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Corrupio diplomático para evitar a guerra

Há 140 mil militares russos estacionados junto à fronteira com a Ucrânia, mas a guerra não é inevitável. As conversações em curso procuram pontos de encontro que reduzam a tensão

Uma conferência de imprensa de dois dirigentes mundiais à meia-noite não é, por si só, algo digno de ficar na História. Mas pode indiciar a importância do assunto que a motivou. Foi o que aconteceu esta semana, em Moscovo, no término de uma conversa sem hora limite entre os presidentes da Rússia e da França. Na agenda de Vladimir Putin e Emmanuel Macron, um único assunto: a escalada da tensão junto à fronteira da Ucrânia, onde a Rússia tem estacionados 140 mil militares fortemente armados que, nas palavras do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, não estão ali “para tomar chá”.

“A diplomacia ainda pode fazer a diferença. As conversações em curso procuram pontos de encontro que facilitem os canais de diálogo e medidas concretas que possam diminuir a tensão”, afirma ao Expresso Maria Raquel Freire, professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. “O sublinhar de medidas relativas a controlo de armamento, negociações de novos tratados nucleares e medidas de consolidação de confiança e transparência em matéria militar parece ganhar consistência no meio das posições irreconciliáveis da Rússia e do Ocidente no que toca ao alargamento da NATO.”

De Moscovo, Macron seguiu para Kiev, onde se reuniu com o homólogo ucraniano. Na próxima semana será o novo chanceler alemão a visitar estas duas capitais. Por estes dias, a tensão em torno da Ucrânia mobiliza a diplomacia de quatro países, e outros tantos líderes, em particular.

FRANÇA — Macron no papel de ‘sr. Europa’

Emmanuel Macron é o líder que mais se tem empenhado, de forma visível, em tentar inverter a escalada da situação entre a Rússia e a Ucrânia, com telefonemas tornados públicos e visitas aos principais protagonistas. “Podemos evitar algumas coisas a curto prazo. Mas não penso que venhamos a ter vitórias a curto prazo. Não acredito em milagres espontâneos. Há muita tensão e nervosismo”, disse o chefe de Estado francês, à partida para Moscovo.

Presidente do país que detém a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, Macron divide as suas atenções entre o perigo de novo conflito na Europa e o próximo dia 10 de abril, primeira volta das eleições presidenciais em França, apesar de ainda não ter anunciado a recandidatura. “Naturalmente os líderes aproveitam o momento político para ganhar votos, através do protagonismo que estas ações diplomáticas acarretam”, diz Raquel Freire. “Mas há uma genuína preocupação com a questão da segurança europeia, e da segurança ucraniana.”

ALEMANHA — Scholz embaraçado pelo ‘elefante na sala’

Há apenas dois meses à frente do Executivo alemão, Olaf Scholz realizou, esta semana, a sua primeira visita aos Estados Unidos. Na Casa Branca, Scholz e Joe Biden afirmaram a amizade e união entre os dois países, mas não conseguiram disfarçar o ‘elefante na sala’ que perturba a relação no atual contexto. Biden foi inequívoco ao dizer que, se a Rússia voltar a invadir a Ucrânia, “não haverá mais Nord Stream 2, vamos acabar com isso”. Este gasoduto de 1225 km garante o fornecimento direto de gás natural da Rússia à Alemanha, contornando países politicamente instáveis, como a Ucrânia. Questionado sobre a possibilidade de o Nord Stream 2 ser usado como sanção à Rússia, Scholz deu a resposta possível: “Faz parte do processo não falarmos de tudo em público”.

RÚSSIA — Putin negoceia em posição de força

A cimeira entre Putin e Macron não produziu resultados imediatos, mas, a atentar nas palavras do russo, há espaço para prosseguir com o diálogo. “É bem possível que várias das ideias e propostas [de Macron], sobre as quais provavelmente ainda é muito cedo para falar, possam ser a base de próximos passos conjuntos”, disse.

Raquel Freire admite que esta crise possa ter um desfecho sem confronto bélico. “Ainda acredito que sim, ponderando os ganhos e custos para a Rússia de uma possível invasão. A Rússia assumiu desde o início da escalada de tensão que só a partir de uma posição de força poderia negociar. E é o que tem feito. Conseguiu retomar as conversações ao mais alto nível, suspensas desde 2014, reunindo com Joe Biden, o secretário-geral da NATO e vários líderes europeus.”

Ao enumerar pretensões, Putin indica com clareza até onde está disposto a ir para garanti-las: “Se a Ucrânia aderir à NATO e recuperar a Crimeia pela via militar, os países europeus serão automaticamente arrastados para um conflito com a Rússia”, afirmou, com Macron ao lado.

UCRÂNIA — Zelensky quer ações e não palavras

Na presença de Macron, com quem se reuniu na terça-feira em Kiev, o Presidente ucraniano comentou a abertura de Putin para reduzir a tensão. “Não confio em palavras”, disse Volodymyr Zelensky. “Acredito que todo o político pode ser transparente tomando medidas concretas.”

Mas nesta crise, também Moscovo espera ação de Kiev, desde logo a aplicação dos Acordos de Minsk (2014). Mediados por França e Alemanha, visam um cessar-fogo permanente em Donbass, no leste da Ucrânia, onde forças ucranianas e separatistas pró-Rússia travam uma guerra há oito anos que já fez 14 mil mortos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de fevereiro de 2022

História explica tensões e dá alento a quem as vive na pele

O afiar de sabres alterna com os toques de telefone. Será possível evitar a guerra?

Não entrar em pânico nem fazer o jogo de Moscovo, ao mesmo tempo que se mostra firmeza, parecem ser palavras de ordem na Ucrânia. Por um lado, o Presidente do país assegurava anteontem que “os riscos [de invasão russa] não existem há apenas um dia, e não cresceram”. Volodymyr Zelensky defendeu que o que aumentou foi “o ruído à volta desses riscos”, enquadrando a concentração de militares russos na fronteira ucraniana — estima-se que mais de 100 mil — numa “guerra de nervos”.

“Agora o conflito está muito nas notícias, mas há que recordar que os ucranianos lidam com isto há anos. Não há medo, mas há grande cansaço”, conta ao Expresso Yehven Doloshytskyy, analista financeiro, de 28 anos, que chegou a Portugal com nove. “Todos já vimos a morte, é essa experiência que nos une”, corrobora o seu compatriota Yuriy Bilinskyy, que vive em Portugal há 22 anos. Partilha a fotografia de uma mulher que ostenta uma enorme espingarda na mão com a legenda: “Mãe de três filhos protege-se contra a ameaça da Rússia.” A tensão não o impede de viajar para a Ucrânia por estes dias, para ver um sobrinho que completa um ano de vida, e assegura que a vida segue o seu curso, apesar da tensão. “As pessoas vão ao cinema, ao teatro, ao café, juntam-se em casa de amigos. Já fomos invadidos há oito anos, não é um problema recente.”

Bilinskyy, que tem uma pequena agência de viagens em Lisboa, recorre à História: “Não há império russo sem a Ucrânia. A chave mestra é Kiev, berço da Igreja Ortodoxa, por isso o senhor que manda em Moscovo precisa de nós para o seu plano de reativar a ordem geoestratégica estabelecida em Ialta, a divisão do mundo. Mas Putin tem um problema: é que nós somos independentes.” Doloshytskyy concorda: “Não vamos voltar a Ialta, isso é para esquecer, e Putin sabe-o.”

Telefonema Macron-Putin

Evitar que guerras do passado se repitam no presente tem sido a prioridade da comunidade internacional, em rondas de negociações sucessivas, de que hoje se joga novo capítulo: o Presidente francês, Emmanuel Macron, falará ao telefone com o seu homólogo russo, Vladimir Putin. Este tem exigido um compromisso firme de que a NATO não se expandirá para leste e a retirada de efetivos ocidentais dos países que fazem fronteira com a Rússia. Do lado atlântico ouve-se a defesa da soberania da Ucrânia para decidir a que alianças aderir e reclama-se uma desmobilização das tropas russas.

Que peso terão vozes como a de Macron ou do chanceler alemão, Olaf Scholz, junto do Kremlin? O Expresso falou com Bernardo Teles Fazendeiro, professor de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, que aponta dissonâncias entre aliados europeus. “A Alemanha tem tido posição muito cética e muito cautelosa, já antiga, em relação a hostilizar Moscovo ainda mais.” Isso explica-se por razões de interdependência económica: “Há o projeto Nord Stream, a conduta de gás que, quando finalizada, vai ligar a Rússia diretamente à Alemanha, e é uma forma de os dois países comercializarem evitando o caminho através da Ucrânia e da Bielorrússia, vistas pela Rússia e pela Alemanha como Estados potencialmente instáveis.” Isso dá a Berlim, a seu ver, vontade de “mediar e procurar soluções diplomáticas”. Quais? “Não é evidente.”

Paris depende muito menos de Moscovo do ponto de vista geoestratégico. “Muito do seu gás natural vem do Magrebe”, lembra Fazendeiro, aludindo ainda à energia nuclear, usada por França e abandonada pela Alemanha. Macron pode, pois, ser uma voz “mais vincada e assertiva em relação à Rússia”, o que agradaria aos países da Europa de Leste, mormente aos Bálticos e à Polónia. O que isto demonstra é que “a União Europeia e os Estados da NATO não têm posição concertada e clara, como é típico da UE”.

“NÃO HÁ IMPÉRIO RUSSO SEM A UCRÂNIA. MAS PUTIN TEM UM PROBLEMA: SOMOS INDEPENDENTES”, DIZ UM UCRANIANO A VIVER EM PORTUGAL

Doloshytskyy, o ucraniano ouvido pelo Expresso, sente-se desiludido com a UE, que mesmo em 2014, quando um avião da Malaysia Airlines foi atingido por um míssil russo, “impôs sanções, fez uns comunicados, e mais nada”. Está ciente de que “os europeus não querem mandar os filhos morrer numa guerra lá longe”. Embora reconheça como legítima a expectativa russa de que a NATO não cresça para oriente, diz: “Um ucraniano olha para a República Checa, para a Polónia, para aquela espécie de nova Europa Central, e quer evoluir nesse sentido. Com a Rússia sempre a ameaçar, essa estrada está bloqueada.” “Parte significativa da população ucraniana encara com bons olhos não só a adesão à UE como até à NATO”, acrescenta Fazendeiro.

EUA: prioridade é a China

A Europa está, não pela primeira vez, pendente da posição americana. Esta semana, o Presidente, Joe Biden, ameaçou Putin com sanções pessoais e recusou-se a dar-lhe as garantias que reivindica. Para Fazendeiro, “o principal objetivo geoestratégico e geopolítico de Washington é a preocupação com a China”. As distrações europeias não são bem-vindas, por tanto, mas são incontornáveis. “Os Estados Unidos não querem parecer fracos em relação à Rússia, para não parecer, em relação à China, que podem ser facilmente chantageados a tomar ou mudar de posição”, explica o académico. Acresce o compromisso com a defesa da Ucrânia, “que aumentou significativamente depois de 2014”, ano em que a Rússia anexou a península da Crimeia.

O perito crê que a garantia de a NATO não acolher a Ucrânia poderia não chegar para Putin. Num ensaio redigido no verão passado, o líder russo “fala da Ucrânia e da Rússia como Estados inseparáveis, irmãos históricos, que é uma posição antiga russa”. Referindo o desagrado russo com uma nova lei ucraniana que promove a língua nacional em detrimento do russo (que é língua materna de 30% da população), remata: “Talvez a Rússia queira uma modificação muito mais profunda dentro da Ucrânia e não apenas alterar o posicionamento do país a nível geoestratégico.”

(MAPA WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo escrito com Ana França e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de janeiro de 2022

Rédea curta na ‘vizinhança próxima’

A expansão da NATO para leste desafiou as pretensões de segurança da Rússia na sua fronteira. Quem olha para Ocidente, como a Ucrânia, paga caro

Nas relações internacionais, uma dicotomia que muito revela sobre as opções geopolíticas dos Estados é a que distingue países marítimos e continentais. Os primeiros projetam poder e influência através dos mares. Os segundos vivem numa insegurança permanente. Sem mar que os proteja, depositam a sua defesa na conquista de mais território para expandirem as suas fronteiras o mais longe possível. A Rússia é o exemplo perfeito de uma potência continental. E toda a tensão que se vive, atualmente, em redor da Ucrânia é sintoma dessa circunstância.

“A Rússia é uma grande massa continental”, que abarca 11 fusos horários. “É um grande enclave, que precisa de garantir pontos de acesso, nomeadamente aos mares quentes”, navegáveis. “Assim se explica, por exemplo, a aliança com a Síria e o apoio a Bashar al-Assad”, diz ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho. “Apesar de ser, hoje, o maior país do mundo, a Rússia nunca foi tão pequena desde a conquista da Sibéria, no século XVII. Isto tem um impacto mental, ao nível das perceções das ameaças, extremamente relevante.”

Desde o fim da Guerra Fria (1989), e em especial desde a desintegração da União Soviética (URSS), em 1991, que um complexo de cerco se acentuou na forma como a Rússia perceciona a sua “vizinhança próxima” — um termo cunhado, em 1993, pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros Andrei Kozyrev. Mais ainda após a expansão da NATO e da União Europeia (UE) para leste, à custa de territórios que faziam parte da URSS ou pertenciam à sua esfera de influência.

MAPA: EXPANSÃO DA NATO NA DIREÇÃO DA RÚSSIA

Durante a Guerra Fria, a rivalidade entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) originou a formação de duas alianças militares que se tocavam no Muro de Berlim. A NATO, fundada em 1949, era liderada pelos norte-americanos e o Pacto de Varsóvia, criado em 1955 e dissolvido em 1991, pelos soviéticos. Desde a queda do Muro (1989) que países da antiga esfera de influência soviética têm aderido à organização ocidental — para grande nervosismo da Rússia, herdeira do legado da URSS

“Os três países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia — eram repúblicas socialistas soviéticas que se demarcaram por completo da Rússia, viraram-lhe costas e aderiram à NATO e à UE. Os outros países continuaram a manter relações privilegiadas com a Rússia, não forçosamente por vontade, mas por necessidade”, diz a académica. E sempre que algum deles expressa o desejo de seguir o rasto dos Bálticos, a Rússia pressente-o como ameaça e reage.

“A Rússia moderna [pós-1991] vê-se com uma fronteira enorme, que é extremamente sensível para as suas pretensões de segurança. A Rússia sempre considerou a NATO um clube do qual não faz parte e, de certa forma, uma ameaça às suas fronteiras. Já era assim nos anos 90, mas agora a Rússia tem os meios de pressão para dizer que não quer mais um alargamento da NATO junto à sua fronteira”, prossegue Sandra Fernandes.

Ucrânia e Geórgia, os seguintes

Na fila para aderirem à NATO estão, desde 2008, dois países da “vizinhança próxima” da Rússia: Ucrânia e Geórgia. “Em 2008 houve uma grande campanha diplomática dos Estados Unidos. O Presidente George W. Bush queria deixar como legado a abertura da NATO a esses dois países. França e Alemanha foram mais cautelosas, perceberam que se tratava de uma linha vermelha para a Rússia. Então, foi oferecida a esses dois países uma perspetiva de adesão sem data.”

Precisamente em 2008, Moscovo utilizou a força armada em solo europeu pela primeira vez desde o fim da URSS, para pôr na ordem o Governo da Geórgia, liderado pelo recém-eleito Mikhail Saakashvili (pró-Ocidente e pró-NATO). Na sequência de cinco dias de guerra, Moscovo acabaria por reconhecer as regiões georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como estados independentes. O que se passa em torno da Ucrânia — liderada desde 2019 por Volodymyr Zelensky, antigo comediante pró-ocidental — é um novo capítulo de um conflito iniciado em 2014, que culminou na anexação da península da Crimeia pela Rússia, e que se insere na mesma estratégia de contenção.

Quarta-feira passada, em Kiev, durante uma visita “de solidariedade” à Ucrânia, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusou a
Rússia de planear aumentar as suas tropas junto às fronteiras da Ucrânia. Na véspera, Moscovo projetou um exercício militar com a Bielorrússia — também contígua à Ucrânia e liderada por Aleksandr Lukashenko, amigo de Putin —, que terá como cenário um hipotético ataque externo. Os receios de nova invasão russa da Ucrânia já levaram a Suécia a reforçar o seu dispositivo militar na ilha de Gotland, no Mar Báltico.

Um ataque cibernético contra sites do Governo ucraniano, sexta-feira passada, foi interpretado como manobra de desestabilização visando a escalada do conflito. Desde o início do ano que missões diplomáticas russas na Ucrânia têm vindo a retirar pessoal, sem que se perceba se é bluff ou preparativo para a guerra. Tudo acontece duas semanas após a Rússia ter enviado tropas para o Cazaquistão — com quem partilha quase 7000 quilómetros de fronteira —, em socorro do Governo acossado por manifestações de rua, que o Presidente cazaque Kasym-Zhomart Tokayev diz serem orquestradas por “forças externas”. “Não permitiremos a ocorrência das chamadas ‘revoluções coloridas’”, garantiu Vladimir Putin, justificando a ajuda militar.

Traumas não muito longínquos

Na mente do chefe de Estado russo estão revoltas populares que resultaram na substituição de governos pró-Moscovo por lideranças pró-ocidentais: a “revolução rosa” (Geórgia, 2003); a “revolução laranja” (Ucrânia, 2004); e a “revolução da tulipa” (Quirguistão, 2005). Ao conter nova “revolução colorida”, a Rússia expõe uma estratégia para a região. “As tropas russas foram enviadas para o Cazaquistão através da Organização do Tratado de Segurança Coletiva [fundada em 1992 pela Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão, Arménia, Quirguistão e Tajiquistão]. Em 2015, a Rússia criou a União Económica Euroasiática [com Cazaquistão, Bielorrússia e Arménia]. Tentou arrastar a Ucrânia, mas não conseguiu”, recorda Sandra Fernandes. Mais do que tentar recuperar a ex-URSS, “a Rússia tenta articular projetos alternativos à NATO e à UE”.

Mais de 30 anos após o fim da Guerra Fria, Washington e aliados continuam a ser o grande inimigo. Neste contexto, para Moscovo, falar-se de NATO ou UE é a mesma coisa. “Não era, mas passou a ser. A UE era uma oportunidade sobretudo de cooperação económica”, diz a investigadora do CICP. “Quando continuou com os alargamentos a leste, paralelos aos da NATO, a Rússia passou a vê-la como um ator geopolítico às suas portas que não serve os seus interesses.”

Há cerca de meio ano, a Rússia atualizou a sua Estratégia de Segurança Nacional. A nova doutrina revela “um país que se sente ameaçado e se vira para dentro, à procura de soluções. Um país que não vê os interesses servidos numa relação com o Ocidente e que está a isolar-se muito.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de janeiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Quando a realidade eleitoral ultrapassa a ficção

Os ucranianos votam domingo nas eleições presidenciais. O favorito é um ator que já fez de Presidente

Volodymyr Zelensky venceu as eleições presidenciais na Ucrânia à segunda volta, com 73% dos votos WIKIMEDIA COMMONS

Qualquer semelhança entre a ficção e a realidade não será pura coincidência. Será apenas a vontade de muitos ucranianos que querem voltar uma página da história do seu país da qual se sentem excluídos. A Ucrânia vota, domingo, na segunda volta das eleições presidenciais e o candidato que lidera — destacado — as sondagens é um humorista de 41 anos chamado Volodymyr Zelensky.

Há quatro anos protagonizou uma sátira política na televisão sobre a improvável caminhada de um modesto professor que, com um discurso anticorrupção, chega a Presidente do país. A série chamava-se “Servo do Povo”, exatamente o nome do partido político criado há pouco mais de um ano que tem transportado o ator na direção da mais alta cadeira do poder em Kiev.

“A razão para a vitória de Volodymyr Zelensky reside principalmente no desejo da sociedade ucraniana de mudanças drásticas ao nível das elites governantes”, explica ao Expresso Igor Tyshkevitch, do Instituto Ucraniano para o Futuro, de Kiev. “Essas exigências não foram satisfeitas após a Revolução da Dignidade”, as manifestações centradas na Praça Maidan, no centro de Kiev, em 2013 e 2014. Maidan pediu que o sistema político fosse reformado e que as rédeas do país fossem colocadas nas mãos de sangue novo. Em vão.

Quase 40 candidatos

“Para entendermos o que se passa há que olhar para a história ucraniana. Entre 1997 e 1999, o então Presidente Leonid Kuchma trocou a anterior liderança ‘vermelha’ [soviética] por uma nova elite política baseada em oligarcas”, continua Igor Tyshkevitch. Vinte anos passados, “nestas eleições, quase todos os candidatos à presidência [na primeira volta participaram 39 candidatos!] são pessoas que entraram na política nesse período.”

É o caso de Petro Poroshenko, de 53 anos, o adversário de Zelensky na segunda volta de domingo. O atual Presidente — um dos homens mais ricos da Ucrânia — debutou na política em 1998, ano em que foi eleito deputado ao Parlamento. Na presidência desde 2014 (eleito à primeira volta com quase 55%), após as manifestações da Praça Maidan terem forçado o afastamento do chefe de Estado pró-russo Viktor Yanukovytch. Poroshenko vê agora a sua reeleição altamente comprometida por um outsider.

Uma sondagem divulgada ontem atribui a Zelensky 57,9% das intenções de voto e a Poroshenko 21,7%. Na primeira volta (31 de março), tiveram 30,2% e 15,9%, respetivamente.

“A sociologia de 2018 mostra que mais de metade da sociedade ucraniana quer que o país seja liderado por pessoas absolutamente novas. Isto levou quase todos os candidatos presidenciais a tentarem ganhar votos junto da parte minoritária da sociedade que prefere que o país seja liderado por alguém experiente”, diz Igor Tyshkevitch. “Ou seja, Zelensky tornou-se o único a poder ganhar facilmente 40 a 45%. Mesmo que ele não fizesse nada, passaria à segunda volta das eleições.”

À parte a imagem de um candidato novo e diferente, Zelensky não é alguém que cative pelo seu pensamento político (que a maioria dos ucranianos desconhece). Numa lógica antissistema, o ator ignorou a forma tradicional de fazer campanha, não fazendo comícios, dando poucas entrevistas e privilegiando a comunicação através das redes sociais.

Esta semana, faltou a um debate com Poroshenko marcado para o Estádio Olímpico de Kiev, deixando o rival sozinho no pódio perante milhares de pessoas. Ao não se desgastar na exposição pública, alimenta a imagem de um ‘Presidente do povo’ que, à semelhança da sua personagem televisiva, vai para o trabalho de bicicleta.

Tensão chega à Eurovisão

Desde a desintegração da União Soviética (1991), estas serão das eleições na Ucrânia onde a Rússia tem menor ascendente sobre algum dos candidatos. Isto apesar de a situação no terreno: em 2014, Moscovo anexou a península da Crimeia e não poupou no apoio aos separatistas do leste da Ucrânia.

“Para a Rússia, não interessa quem vai ser o novo Presidente da Ucrânia”, conclui Tyshkevitch. “Os russos trabalham para enfraquecer a instituição da presidência aos olhos do povo. Querem que a Ucrânia tenha um Presidente fraco e um Parlamento menos controlável. De tempos em tempos, apoiam um lado e o outro lado, o que cria incerteza no país.”

Ucrânia e Rússia vivem uma tensão transversal. Há dois meses, sem grandes justificações, Kiev retirou-se da Eurovisão, marcada para maio em Israel. Não gostou que a cantora escolhida para representar o país, de nome artístico MARUV, se recusasse a cancelar os concertos que já tinha agendados… na Rússia.

PERFIS

PETRO POROSHENKO
O atual Presidente da Ucrânia é um dos homens mais ricos do país. Nascido em 1965, em Bolgrad (sudoeste), licenciou-se em Economia. Logo se lançou no mundo dos negócios começando a vender grãos de cacau à indústria soviética. Hoje, o império empresarial do “rei do chocolate” inclui um estaleiro naval e um canal de televisão. Em 1998, entrou na política, ao ser eleito deputado. Tem quatro filhos.

VOLODYMYR ZELENSKY
Estudou Direito, mas deixou-se seduzir pela representação. Nascido em 1978, a carreira política deste comediante confunde-se com o seu percurso na ficção. Em 2015, desempenhou o papel de Presidente da Ucrânia na série “Servo do Povo”. É membro do partido Servo do Povo, fundado há um ano. Apoiou os protestos pró-Europa da Praça Maidan, em 2013/14. Tem dois filhos e é filho de judeus.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2019. Pode ser consultado aqui