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Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Esta quinta-feira há reunião em Bruxelas, mas a tensão segue dentro de momentos

Os líderes da Sérvia e do Kosovo reúnem-se, esta quinta-feira, em Bruxelas. O encontro acontece três semanas após medidas decretadas pelo Governo de Pristina terem sido mal recebidas pela minoria sérvia do território, levando-a a bloquear estradas e colocando a missão da NATO em alerta. A tensão pode repetir-se no final do mês, se a conversa entre Aleksandar Vucic e Albin Kurti se transformar num diálogo de surdos

O Kosovo é uma ferida aberta na Europa que ameaça não cicatrizar. Esta quinta-feira, as principais partes em contenda terão uma nova oportunidade para suturar alguns golpes recentes, num encontro ao mais alto nível, entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Albin Kurti, que decorrerá em Bruxelas.

Este diálogo segue-se a uma recente escalada da tensão entre Belgrado e Pristina que levou a minoria sérvia do Kosovo — um território de maioria albanesa — a atravessar camiões nas ruas e a bloquear pontos de passagem na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas barricadas ergueram-se em protesto contra duas medidas que o Governo de Pristina queria aplicar à minoria sérvia.

A tensão esfumou-se momentaneamente, após as autoridades kosovares aceitarem adiar um mês a entrada em vigor das novas regras, reagendada para 1 de setembro. A cedência foi tornada pública após interferência de Jeffrey Hovenier, o embaixador norte-americano no país.

Os Estados Unidos, que têm sido um parceiro do Kosovo desde a primeira hora, foram dos primeiros países a reconhecer a independência do território — até então uma província da Sérvia de maioria albanesa —, declarada de forma unilateral a 17 de fevereiro de 2008.

Se as autoridades do Kosovo insistirem na aplicação das medidas, “provavelmente, volta a acontecer o mesmo. Esta tensão é recorrente, não foi a primeira vez que aconteceu”, diz ao Expresso o major-general Raul Cunha, que esteve em missão no Kosovo por duas vezes (em 2000 com a NATO e de 2005 a 2009, com a ONU). “Quando as Nações Unidas foram para o Kosovo, tiveram de substituir as placas de matrícula das suas viaturas. Mas os sérvios, sobretudo da região norte, recusaram sempre fazê-lo.”

Os resistentes do norte

No centro da mais recente revolta dos sérvios kosovares — que se estima correspondam a 5% da população total de 1,8 milhões —, estão dois novos regulamentos. Um deles obrigava os cidadãos sérvios que entrassem no Kosovo, por via terrestre ou aérea, a terem de andar com um documento de identificação emitido pelas autoridades de Pristina, em substituição do comprovativo passado por Belgrado. Esta seria uma medida de reciprocidade já que é o que acontece com os kosovares que visitam a Sérvia.

A outra nova lei decretava a obrigatoriedade dos carros dos sérvios kosovares passarem a ter matrículas com as letras RKS. Desde 1999 que as viaturas desta minoria circulam com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como KM para residentes em Kosovska Mitrovica ou PR para moradores em Pristina. Apesar de as considerar ilegais, o Kosovo tem-nas tolerado nos quatro municípios do norte onde vive parte importante da minoria sérvia.

“As autoridades do Kosovo têm soberania nominal sobre a totalidade do território, no que são militarmente apoiadas pelas forças da KFOR/NATO”, explica ao Expresso Pascoal Pereira, professor na Universidade Portucalense. “Contudo, existe uma minoria sérvia, especialmente concentrada nas zonas à volta de Mitrovica (norte), que resiste em reconhecer as autoridades de Pristina e que é informalmente apoiada por Belgrado.”

Não foi a primeira vez que os sérvios kosovares bateram o pé nas ruas a novas propostas legislativas. “Tivemos uma situação semelhante em setembro de 2021. As barricadas duraram quase duas semanas. Seguiu-se um acordo de desescalada que falhou”, recorda ao Expresso Milica Andrić-Rakić, analista na ONG New Social Initiative, com sede em Mitrovica. “Um destes regulamentos foi aplicado duas vezes no passado sem quaisquer tensões. Uma terceira tentativa de aplicar a mesma coisa sem um acordo resultará no mesmo cenário. Mas sinto que a pressão da comunidade internacional para que ambos os lados negoceiem é agora maior.”

As medidas da polémica têm caráter burocrático, mas mexem com o nacionalismo das comunidades a que se destinam. Catorze anos após a separação do Kosovo em relação à Sérvia, está amplamente demonstrado que o sentimento de pertença não se impõe por decreto.

Milica Andrić-Rakić é sérvia kosovar e não hesita quando o Expresso lhe pergunta se se sente mais sérvia ou kosovar. “Eu não desenvolvi uma identidade cívica kosovar. Isso é algo bastante difícil para mim porque a minha comunidade tem tido graves problemas com diferentes Governos do Kosovo”, admite.

“Este tipo de tensões são comuns. Já aconteceram com governos anteriores e relativamente a diferentes questões. Mas tornaram-se mais frequentes com o [atual] Governo de Albin Kurti, que adotou uma abordagem mais rígida no que diz respeito àquilo que deseja negociar com a Sérvia.” Tido como um político da linha radical, Kurti foi em tempos designado de “Che Guevara do Kosovo”.

A falta de identificação da comunidade sérvia é apenas uma parte da complexidade desta questão. No livro “Kosovo, a Incoerência de uma Independência Inédita” (Edições Colibri, 2019), Raul Cunha vai às origens da relação umbilical entre o povo sérvio e o Kosovo: “O território do Kosovo foi o berço do Estado Medieval Sérvio. Esta região é considerada pelos sérvios como sendo a terra de origem da sua nacionalidade (o Kosovo e Metohija). (…) Na altura da formação do denominado Estado Medieval Sérvio, o território foi povoado na sua quase totalidade por uma população cristã ortodoxa. Torna-se natural assinalar o Kosovo como um território sérvio através da simples análise dos seus topónimos — todas as localidades têm nomes sérvios, inclusive a palavra Kosovo que provém da palavra sérvia kos, que significa melro ou pássaro negro”.

Ao Expresso, o militar destaca ainda a dimensão religiosa do problema, recordando que “a sede do patriarcado da igreja sérvia é em Peć, no Kosovo”, cuja população é esmagadoramente muçulmana. “Para mim, não faz sentido haver dois territórios com o mesmo povo, a mesma língua, mas que correspondem a países diferentes: o Kosovo e a Albânia. O Kosovo faz sentido como parte da Albânia”, diz Raul Cunha, admitindo a necessidade de haver uma divisão do território para contentar (e acalmar) as populações que não aceitem essa integração.

Um protetorado da ONU e da NATO

Hoje, o Kosovo goza de um estatuto invulgar face ao direito internacional. Dezenas de países reconhecem-no como um Estado soberano, mas dezenas de outros — com a Sérvia à cabeça — insistem que a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU ainda está em vigor e que é esse o quadro legal que vincula as partes. “Teoricamente, pelo direito internacional, o Kosovo ainda é um território sob administração das Nações Unidas”, explica Raul Cunha.

Aprovada em 1999, na sequência de 78 dias de bombardeamentos aéreos da NATO à Jugoslávia, em socorro da população albanesa do Kosovo reprimida pelo regime de Slobodan Milosevic — de que era porta-voz o atual Presidente sérvio, Aleksandar Vucic —, esta resolução estabeleceu as condições para que o Kosovo se tornasse de facto num protetorado da ONU. O território foi colocado sob administração da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK, ainda hoje em funções), com o objetivo de assegurar a administração civil. No terreno, era apoiada por uma missão da NATO (KFOR), que tinha a incumbência de garantir um ambiente seguro no território.

Esta solução seria transitória, até que as partes acordassem um estatuto final para o Kosovo, que ainda não aconteceu. Aos 14 anos de vida, a paz continua frágil e o país — reconhecido por Portugal — parece continuar necessitado dessas âncoras internacionais. Aquando da recente tensão, a KFOR — que tem atualmente 3770 tropas no terreno — emitiu um comunicado reconhecendo a gravidade da situação e afirmando-se preparada para intervir “se a estabilidade estiver comprometida”.

Uma questão coloca-se, pois, com legitimidade: estará a estabilidade do Kosovo refém da presença militar internacional? “Sim”, responde Raul Cunha. “A estabilidade do Kosovo depende sempre da decisão da NATO em continuar a defendê-lo. O Kosovo não teria qualquer hipótese contra as forças sérvias. Penso que a presença militar da NATO no território sentencia uma solução militar por parte da Sérvia. Seria um passeio para os sérvios.”

(IMAGEM Bandeiras da Sérvia e do Kosovo EURACTIV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Os candidatos que atrapalham a Ucrânia

A Ucrânia tem pressa em aderir à UE. Mas cinco países já estão na corrida. Um deles há mais de 20 anos

Mapa da Ucrânia colorido com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

A Ucrânia está em acelerada aproximação à União Europeia (UE) e o seu Presidente parece estar já em posse do calendário. “A fase final da grande maratona diplomática, que deve terminar dentro de semana e meia, começou hoje”, disse Volodymyr Zelensky há cinco dias, depois de ter recebido em Kiev a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Nesta maratona estamos realmente com a UE, em equipa, e essa equipa tem de vencer. Estou certo de que em breve receberemos uma resposta sobre o estatuto de candidato para a Ucrânia.”

Zelensky aponta ao Conselho Europeu da próxima semana, em Bruxelas, que irá discutir a urgência ucraniana em aderir à UE. A invasão russa precipitou também pedidos de adesão da Geórgia e da Moldávia. Entre os 27, António Costa tem sido dos dirigentes que mais tem contrariado o apelo às emoções do Presidente ucraniano, que pressiona por uma integração rápida. Em entrevista ao “Financial Times”, o primeiro-ministro português defendeu, esta semana, que Bruxelas arrisca criar “falsas expectativas” à Ucrânia. Talvez tenha em mente a morosidade do processo de Portugal, que, sem a complexidade geopolítica da Ucrânia, demorou nove anos a entrar na então Comunidade Económica Europeia (CEE).

Na maratona em que Zelensky transformou o processo ucraniano há já cinco atletas em prova: o oitavo país muçulmano mais populoso do mundo e quatro dos Balcãs Ocidentais. Três estão em fase de negociações e dois esperam — e desesperam — pelo início formal do processo.

SÉRVIA E MONTENEGRO: Sprint até à meta

Estes países, que resultaram do desmembramento da antiga Jugoslávia, têm o estatuto de candidato à UE há 10 e 12 anos, respetivamente. Ambos têm negociações abertas com Bruxelas, mas a Sérvia (sete milhões de habitantes) enfrenta obstáculos políticos. À cabeça, a questão do Kosovo, com potencial para bloquear o processo. Belgrado não reconhece a independência da sua antiga província de maioria albanesa, como não o fazem cinco membros da UE, incluindo Espanha e Grécia.

O atual contexto de guerra na Ucrânia veio acrescentar complexidade ao dossiê sérvio. Tradicional aliado da Rússia (ambos de matriz cristã ortodoxa), Belgrado resiste a aplicar sanções a Moscovo. “É nossa expectativa que essas sanções também sejam apoiadas por todos os que se veem como candidatos à adesão à UE”, alertou, há uma semana, o chanceler alemão, Olaf Scholz, de visita à Sérvia. “Não respondemos a pressões dessas, em que alguém nos ameaça e temos de fazer alguma coisa…”, respondeu-lhe o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic.

O processo do Montenegro (600 mil habitantes) é bem menos trabalhoso. Este país, que ascendeu à independência em 2006 (separando-se da Sérvia por referendo), já conseguiu abrir negociações em todos os 33 capítulos previstos, tendo encerrado três.

TURQUIA: O atleta cansado que ameaça desistir

O sonho europeu da Turquia remonta ao longínquo ano de 1987, quando pediu adesão à CEE. Em 1999 obteve o estatuto de candidato. Membro da NATO e parceiro estratégico da UE em matéria de migrações, segurança e contraterrorismo, este processo começou a baquear face à agenda turca em matéria de democracia, Estado de direito e direitos humanos. Em 2018 as negociações congelaram.

Se a adesão turca nunca foi consensual dentro da UE — desde logo pelo peso demográfico do país (84 milhões de habitantes), que o colocava ao nível da poderosa Alemanha, e pela sua matriz muçulmana —, o atual contexto de guerra veio afastar ainda mais Ancara e Bruxelas. Não pela equidistância turca em relação a Kiev e Moscovo, mas perante a resistência à entrada da Finlândia e Suécia na NATO.

MACEDÓNIA DO NORTE E ALBÂNIA: Sem esperança de apanhar os da frente

Como aconteceu com Portugal e Espanha, a UE entendeu que as adesões da Albânia (três milhões de habitantes) e da Macedónia do Norte (dois milhões) deviam correr em paralelo, ainda que os macedónios tenham abordado as autoridades europeias muito antes dos albaneses: o pedido da Macedónia data de 2004 e o da Albânia de 2009. São candidatos desde 2005 e 2014, respetivamente.

A UE exigiu trabalho extra à Albânia, nomeadamente em áreas como o sistema judi­cial, a Administração Pública, os serviços de informação e o combate à corrupção e ao crime organizado.

Skopje foi solidária com Tirana e esperou. O inverso coloca-se agora, com o dossiê macedónio a marcar passo devido a objeções da Bulgária, que inviabiliza a unanimidade no Conselho. Já em 2019 a mudança de nome — de Antiga República Jugoslava da Macedónia para República da Macedónia do Norte — visou apaziguar a Grécia, que tem uma região chamada Macedónia.

Estão em causa obstáculos de natureza identitária relacio­nados com o reconhecimento mútuo de línguas, factos históricos que Macedónia e Bulgária reivindicam e a nacionalidade de alguns heróis. Em outubro, o Presidente búlgaro, Rumen Radev, disse que o seu país pode viabilizar a adesão se Skopje parar com o “apagamento subtil” da identidade dos macedónios búlgaros.

TRÊS PERGUNTAS A.. Isabel Santos

Eurodeputada, relatora do Parlamento Europeu para o processo de adesão da Albânia

A guerra deve tornar a adesão da Ucrânia prioritária?
Estamos a discutir a atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia quando há outros Estados que apresentaram candidatura, como a Moldávia e a Geórgia, e quando há expectativas criadas nos países que já têm esse estatuto. Alguns esperam há anos que seja marcada a primeira Conferência Intergovernamental (CIG), que é só o começo de um longo processo de negociações, de abertura e encerramento de diferentes dossiês, que levam a mudanças legislativas e reformas nos países até que ocorra o ato de adesão. A Comissão reconheceu, no fim de 2019, que a Macedónia do Norte e a Albânia tinham cumprido todas as condições para agendar a CIG.

Dada a objeção búlgara à Macedónia, não se pode separar esse processo do albanês?
É possível. Houve um momento em que a Macedónia parecia mais bem posicionada do que a Albânia, e a Macedónia foi solidária. Agora é ao contrário. Tenta-se manter uma certa solidariedade. Não está fora de questão que no futuro se venha a separar os processos. A Bulgária tem tido uma posição muito renitente em relação à Macedónia do Norte, baseada em argumentos profundamente nacionalistas e até pouco racionais. A Albânia alcançou todas as metas que lhe foram exigidas para avançar. É uma situação injusta.

Esta guerra pode levar a UE a recear alargar-se para Leste?
Não deve. O alargamento tem sido um processo de garantia de estabilidade, paz e desenvolvimento. Devemos continuá-lo. Olhando para os Balcãs e a sua história trágica, percebemos quão importante é este alargamento para a região, mas também para a estabilidade europeia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

Manuel Valls ao Expresso. “A prioridade de França é reconciliar os franceses”

O antigo primeiro-ministro francês passou por Portugal em campanha eleitoral. Candidato pelo círculo da emigração nas legislativas deste mês, em representação dos franceses que vivem nomeadamente em Portugal, concedeu uma entrevista ao Expresso onde identificou os principais problemas de França, comentou a guerra na Ucrânia e explicou por que razão abandonou o Partido Socialista

Manuel Valls foi primeiro-ministro de França entre 2014 e 2016, durante o mandato presidencial de François Hollande. Então militante do Partido Socialista, o francês nascido na Catalunha abandonou essa histórica força política após ter perdido as primárias para as presidenciais de 2017 para Benoît Hamon, da ala esquerda. Agora que o PS aderiu à frente chefiada por Jean-Luc Mélenchon, Valls decreta a sua morte. Ele, que sempre foi centrista, aproveitou a dupla nacionalidade para ser candidato à Câmara Municipal de Barcelona em 2019, pelo partido centrista liberal Cidadãos. Não ganhou, mas foi vereador. Agora regressa à arena política francesa ao lado do Presidente, Emmanuel Macron, candidatando-se às legislativas de 12 e 19 de junho pela frente centrista e liberal do chefe de Estado, rebatizada de Renascimento. Aos 59 anos, concorre à Assembleia Nacional pelo círculo eleitoral que representa os franceses emigrados em Portugal, Espanha, Andorra e Mónaco. Esteve em Portugal no final de maio, em ações de campanha que o levaram de Braga ao Algarve.

ACREDITO QUE HOJE O PRINCIPAL PROBLEMA DE FRANÇA É A SUA DIVISÃO

Quais são hoje os principais problemas de França?
 A sua divisão. São as fraturas sociais, geracionais e geográficas demonstradas na primeira volta das presidenciais, com três grandes blocos: Macron, Le Pen, Mélenchon. Todas as sociedades democráticas vivem essa polarização. Temos em Espanha o fenómeno Vox. Em Portugal, pela primeira vez, há uma lista à direita da direita. Há movimentos na rua, como os “coletes amarelos”. A democracia representativa está em crise. A abstenção é muito alta, a sociedade está tensa, enquanto no plano económico a situação é boa: teríamos perspetiva de pleno emprego se não fosse a crise ucraniana. França resistiu à crise sanitária com investimento na ajuda às empresas, negócios, cultura, pessoas e famílias. Não obstante, há desigualdades, precariedade no trabalho. Cuidado: a economia é uma coisa, depois existem as pessoas que ficam de lado. Basicamente, a principal prioridade de França é reconciliar os franceses consigo mesmos.

É candidato pela maioria presidencial, que perdeu votos relativamente a 2017. Como vê a evolução eleitoral de Marine Le Pen?
Na primeira volta das presidenciais, Macron ganhou votos em relação a 2017. A segunda volta foi diferente, mas é normal. Teve, ainda assim, mais do que as sondagens previam, 58%. O fenómeno novo é a tripartição Macron-Le Pen-Mélenchon, e haver um hipercentro em torno do Presidente, de centro-esquerda e centro-direita: os republicanos, a social-democracia, os ecologistas também estão com Macron. Temos a ascensão da extrema-direita e aquilo a que chamo mélenchonismo, a união da esquerda que é totalmente contrária à história do Partido Socialista. Os extremos alimentam-se da raiva, do medo do futuro, da precariedade social, de pessoas que não se sentem consideradas. Hoje há esse sentimento junto de pessoas que, mesmo que ganhem bem a vida, estão muito preocupadas porque o custo da gasolina ou do aquecimento impossibilita o equilíbrio dos orçamentos familiares. É por isso que Macron precisa de uma forte maioria nas legislativas, porque o país está dividido, pode haver movimentos na rua, há reformas que têm de ser feitas. É preciso que a Assembleia o faça.

OS EXTREMOS [COMO MÉLENCHON E LE PEN] ALIMENTAM-SE DA RAIVA, DO MEDO DO FUTURO

Porque saiu do Partido Socialista?
Deixei-o há cinco anos, após primárias, porque, em 2017, o Partido optou por abandonar a cultura de Governo. Escolheu criticar. Não é que tudo tenha sido bem feito, mas colocou-se na oposição ao que havíamos feito durante cinco anos com François Hollande [Presidente de 2012 a 2017]. Rompeu com a social-democracia. Qual é a diferença entre [Olaf] Scholz, [António] Costa ou [Pedro] Sánchez e os socialistas franceses? É que uns querem governar e governam. Os socialistas franceses desistiram de governar, e eu previ-o. Agora não só renunciaram a governar, como renunciaram a ser o que eram, desde que aceitaram pela primeira vez submeter-se a um acordo eleitoral onde são marginalizados e, sobretudo, a uma submissão ideológica de projeto. Estão sujeitos não ao Partido Comunista, mas a Mélenchon e à sua visão populista, violenta, com um projeto que representa uma tripla rutura: com a União Europeia (UE) e a NATO, com os valores da República — têm uma visão muito comunitária, buscaram essencialmente o voto muçulmano — e com a seriedade económica. Fiz bem há cinco anos, infelizmente. A percentagem de votos do PS quando saí era de 6,5%, já não era muito. Hoje é de 1,5%. Acabou.

AO CONTRÁRIO DE SCHOLZ, COSTA OU SÁNCHEZ, O PS FRANCÊS DESISTIU DE GOVERNAR

Era primeiro-ministro em 2014, ano em que a Rússia anexou a Crimeia. A invasão da Ucrânia surpreendeu-o?
Há que ser honesto, a maioria dos especialistas ficou surpreendida com os objetivos de Vladimir Putin. Não tanto pela vontade de conquistar o Donbas ou fechar o Mar Negro ou o Mar de Azov. O que surpreendeu foram os objetivos iniciais, ou seja, a destruição da Ucrânia e do poder democrático em torno do Presidente Zelensky. Num artigo muito importante de cunho histórico, em julho de 2021, Putin escreveu que a Ucrânia não existe. Há que ler o que o ditador escreveu. E por isso há que ter muito cuidado. Felizmente, a Ucrânia resistiu. Houve uma reação da UE e da NATO que impediram consequências históricas maiores. O pedido de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia é uma mudança muito importante. Mas atenção, Putin foi impedido, mas ocupa a Crimeia e outras regiões que vai querer integrar na Federação Russa. E, um dia, vai querer unir os territórios russos, pelo que Odessa, a Transnístria, os territórios próximos da Roménia podem ser alvos. Por isso, a crise ucraniana, a tensão com a Rússia a nível diplomático, militar e económico vai durar.

Como avalia a resposta da União Europeia?
Foi forte. Caminhamos sobre arame, porque trata-se de ajudar a Ucrânia em termos financeiros e no plano militar, fornecer armas, com os norte-americanos, claro. Há sanções contra a Rússia, os efeitos nesta fase são limitados. Ao mesmo tempo, não estamos em guerra com a Rússia. Às vezes é difícil entender. Mas há que ser prudente, pois estão em causa potências nucleares — Rússia, Estados Unidos, França. O mais importante, como na crise pandémica, é que a Europa está consciente de que deve ser soberana e autónoma em muitos domínios, em particular no que diz respeito ao gás, o que abriu um grande debate na Alemanha. Outra estratégia energética para todo o continente diz respeito à Península Ibérica: a questão do gás argelino, a energia fotovoltaica, as energias solares renováveis. Portugal e Espanha podem estar na dianteira. Temos necessidade de outra estratégia energética, de outra estratégia militar, nos próximos meses e anos, o que é uma mudança considerável. Recordemo-nos que há dois ou três anos, dizia-se que a Europa estava acabada. A Europa está aí, é um mercado, uma democracia, uma moeda, pode ter uma defesa. Há muitas coisas a fazer para integrar ainda mais esta Europa.

A TENSÃO COM A RÚSSIA, A NÍVEL DIPLOMÁTICO, ECONÓMICO, MILITAR, VAI DURAR

É favorável à adesão da Ucrânia à UE a curto prazo?
Temos de enviar uma mensagem muito clara. Se a Ucrânia não entrar na Aliança Atlântica, o que basicamente é um pretexto por parte de Putin, já que não estava na agenda, por outro lado a entrada na família da União Europeia é inquestionável. Sabemos que por razões económicas e orçamentais, mas também devido ao funcionamento do Estado ucraniano, o país não está pronto. É provável que leve muitos anos. Há países como a Sérvia e a Albânia, sobretudo, que não são membros da UE e estão à espera. Isso significa que temos de encontrar uma Europa em várias velocidades, um velho debate, ou então o que Macron propõe, uma “comunidade política europeia”. De qualquer forma, deve haver muito rapidamente um gesto que mostre que a Ucrânia está a entrar num processo e que está protegida pela Europa. Há que encontrar a fórmula certa. Sou favorável a que se ajude este grande país de 40 milhões de habitantes, metade de cuja riqueza acaba de ser destruída. Sabemos que não faz muito sentido entrar na União Europeia, no mercado único ou na zona euro, mas há que criar uma amarra forte. O país merece. O seu povo merece a nossa união, ao abrigo de formas que devem ser inventadas muito em breve.

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui. A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui

Entrevista a Manuel Valls: “No período que vivemos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador”

Ausente do primeiro plano da política francesa há mais de cinco anos, o ex-primeiro-ministro Manuel Valls vai a votos nas eleições legislativas de 12 e 19 de junho. Disputa um lugar de deputado, em representação dos franceses residentes em Espanha, Portugal, Andorra e Mónaco. A candidatura trouxe-o a Portugal, para desenvolver contactos e participar em ações de campanha em Lisboa, Cascais, Porto, Braga, Tavira, Portimão e Setúbal

O ex-primeiro-ministro Manuel Valls disputa um lugar no Parlamento francês, onde já serviu durante 16 anos, entre 2002 e 2018 RUI OLIVEIRA

A menos de três meses de completar 60 anos de vida, o ex-primeiro-ministro francês Manuel Valls tem a atitude de um jovem apaixonado pelo mundo da política. Após 16 anos como deputado na Assembleia Nacional (2002-2018), dois anos como ministro do Interior (2012-2014) e outros dois como chefe do Governo (2014-2016), volta a candidatar-se a um assento no Parlamento de França.

Se for eleito, cumpre o mandato de deputado? Ou será opção para o próximo Governo, como ministro ou mesmo primeiro-ministro?
 Não. Já fui ministro e primeiro-ministro e o compromisso que assumi é o de estar na Assembleia Nacional para ajudar a maioria e o Presidente, alem de estar presente com os franceses em Espanha e Portugal e nos principados de Andorra e do Mónaco. Tenho [quase] 60 anos e cinco pela frente para fazer bem este trabalho. É fascinante, através deste círculo também tocamos em questões económicas, do Mediterrâneo, da relação com a América Latina, que conheço bem, e de África, através do papel de Espanha e Portugal. Há muito que fazer.

Que motivação tem agora para se candidatar a deputado, depois de ter sido primeiro-ministro?
 No período que vivemos em França e na Europa, com desafios consideráveis ligados à guerra na Ucrânia, com consequências económicas, as alterações climáticas, a transformação ecológica, os riscos terroristas, a crise da democracia representativa, a necessidade de reconciliar os franceses consigo mesmos, nenhum ex-primeiro-ministro pode permanecer apenas espectador ou comentador. Tenho energia e vontade, caso contrário ficaria tranquilamente na minha ilha de Menorca. Mas quero agir. Concordei com o Presidente da República que poderia voltar a ser útil à maioria presidencial. Para mim, a ação deve ter a legitimidade do voto. Como vivo entre Espanha e França, não ia regressar ao círculo eleitoral onde fui eleito 16 anos [Essonne], a sul de Paris. O círculo dos franceses que vivem no Mónaco, Andorra, Espanha e Portugal, foi natural para mim, porque tenho dupla cultura e as nacionalidades espanhola e francesa. Nasci em Barcelona, falo catalão e espanhol. Havia uma lógica, uma consistência.

Filho de pai espanhol e mãe italo-suíça, Manuel Valls nasceu na Catalunha e cresceu em França RUI OLIVEIRA

Que tipo de relação espera desenvolver com Portugal e com a comunidade francesa que aqui vive, se for eleito deputado?
 Devemos estar atentos às expectativas dos franceses que vivem aqui, no que diz respeito ao acesso aos documentos administrativos, passaportes, bilhetes de identidade, carta de condução, certificados de residência… Depois há as questões de acesso às escolas, o custo da matrícula nos liceus [franceses] do Porto e Lisboa. Há todas as questões relacionadas com pensões, os problemas fiscais dos franceses mais velhos que escolheram Portugal para terem uma vida doce.

E depois, há todo o tecido económico, sobretudo em Lisboa e Porto. Um antigo primeiro-ministro pode ser útil às empresas francesas e portuguesas. Já existem muitas câmaras de comércio, a Alliance Française, clubes de empresários, empresas francesas muito grandes em Portugal e muitos franceses que abriram pequenos comércios, mercearias, padarias, talhos, restaurantes, outros que trabalham na publicidade. É uma força incrível.

Há dois milhões de portugueses ou de origem portuguesa em França, há 40 a 50 mil franceses em Portugal, há descendentes de portugueses que começam a tentar ganhar a vida em Portugal… tudo isso cria uma rede, uma cooperação que deve ser estimulada enquanto elemento importante de uma relação muito bonita, muito apoiada na cultura, entre a França e Portugal, mas que precisa de encontrar mais força no plano económico. Estamos no ano da Temporada Cruzada Portugal-França e Emmanuel Macron virá este ano a Portugal, logo há muitas coisas para acompanhar.

Disse que tem dupla cultura. E já exerceu cargos políticos em França e em Espanha. Que ligação tem com estes dois países a nível sentimental? Sente-se mais francês ou espanhol?
 Sou profundamente francês na minha maneira de pensar e de ser. E sinto-me francês. Escrevi um livro cujo título é uma citação de um intelectual francês, um grande lutador da resistência, um amigo do general de Gaulle que se chamava Romain Gary: “Não tenho uma gota de sangue francês”. Usei-a para título [“Pas une goutte de sang français, mais la France coule dans mes veines” (Não tenho uma gota de sangue francês, mas a França corre-me nas veias), editora Grasset, 2021].

O meu pai é espanhol e a minha mãe é italo-suíça, mas a França corre nas minhas veias e na minha mente. O facto de ter dupla cultura, de falar catalão com a minha mãe, a minha irmã e a minha esposa [a empresária catalã Susana Gallardo], de falar castelhano e catalão na rua, de sonhar em ambas as línguas dá-me grande abertura, que vou pôr ao serviço dos franceses que vivem em Espanha e em Portugal, mas não só. Também na relação entre Espanha e Portugal, por um lado, e a França, por outro.

Estou muito feliz por estar em Portugal estes dias. Voltarei regularmente se for eleito, e se não for deputado também. Mas claro que espero voltar como deputado, porque há uma ligação, antes de tudo, a nível da língua e da cultura. França deve recuperar mais influência a nível cultural, especialmente agora que há muitos franceses a viver cá.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui. Na segunda parte da entrevista, publicada na edição impressa, nas bancas esta sexta-feira, Manuel Valls identifica os principais problemas de França, justifica o seu divórcio do Partido Socialista e comenta a guerra na Ucrânia