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O que se passa no mundo ao nível da vacinação? Uma discrepância comprometedora

Portugal tem quase 90% dos seus habitantes imunizados. Com uma população semelhante, o Burundi administrou as duas doses da vacina a apenas 0,1% de quem vive no país. A pandemia é global, mas a vacinação ainda não o é

IMAGEM PIXABAY

Ao terceiro ano de pandemia, tornou-se chavão — e uma certeza absoluta — dizer-se que a covid-19 não será controlada no mundo enquanto cada país não a controlar individualmente. Ao estilo de um tsunami, que vai e vem, também as vagas da doença se vão sucedendo, contagiando à vez todos os países. Ou quase todos…

A nível oficial, há quatro países que ainda não reportaram qualquer caso de covid-19. Dois deles têm regimes políticos opacos — a Coreia do Norte e o Turquemenistão — e outros dois são Estados insulares, rodeados pelas águas do Oceano Pacífico: Tuvalu e Nauru.

Em todos os outros, corre-se contra o tempo perante a emergência de novas variantes, como a Ómicron, mais contagiosa do que as anteriores. Mas olhando para o mapa-mundo da vacinação, esta é uma corrida muito desigual, que decorre a múltiplas velocidades.

Israel, por exemplo, já começou a administrar a segunda dose de reforço — na prática, a quarta vacina — a maiores de 60 anos, profissionais de saúde e qualquer pessoa considerada vulnerável. Os israelitas deram este passo no combate à pandemia apoiados nas conclusões preliminares de um estudo do Centro Médico Sheba, nos arredores de Telavive, segundo as quais a quarta dose produz cinco vezes mais anticorpos, uma semana após ser administrada.

Em contraste com a vanguarda de Israel, que tem 9 milhões de habitantes e já imunizou 64,3% da população, a República Democrática do Congo, onde vivem dez vezes mais pessoas, tem apenas 0,1% da população com a vacinação completa.

MALÁSIA (ANNICE LYN / GETTY IMAGES)

Segundo o site Our World in Data, que atualiza diariamente um conjunto de índices relativos à pandemia, 59,2% da população mundial já recebeu pelo menos uma dose da vacina para a covid-19. Porém, no conjunto dos países de baixo rendimento (segundo terminologia usada pelo Banco Mundial), essa percentagem não vai além dos 8,9%.

E quando se toma em consideração a vacinação completa (duas doses), a discrepância ao nível da percentagem da população imunizada é ainda mais gritante.

  • África: 9,7%
  • América do Norte e Central: 58,5%
  • América do Sul: 64,7%
  • Ásia: 58%
  • Europa: 61,9%
  • União Europeia: 69,9%
  • Oceânia: 58,6%

Numa outra abordagem ao estado da vacinação no mundo, em cada um dos cinco continentes, um grande fosso separa os países com maior percentagem de imunização daqueles com mais dificuldade em obter e aplicar as vacinas.

1. ÁFRICA

As ilhas Seicheles são o país com mais habitantes com vacinação completa (79,1%). No polo oposto está o Burundi, com menos de 0,1%.

2. AMÉRICA

Na metade norte do continente, o Canadá já garantiu a imunização de 77,6% da sua população, enquanto no Haiti apenas 0,7% está na mesma situação. A sul, o Chile é quem mais vacinou até ao momento (86,6%) e a Guiana menos (37,4%).

3. ÁSIA

Os Emirados Árabes Unidos lideram com 91,7% da sua população vacinada. Inversamente, o martirizado Iémen ainda só conseguiu imunizar 1,2%.

4. EUROPA

Com 89,9%, Portugal é o país com maior percentagem de população vacinada. Com apenas 22,1%, a Bósnia-Herzegovina é quem está mais atrasado. Entre os membros da União Europeia, o país com taxa de vacinação mais baixa é a Bulgária (28,2%).

5. OCEÂNIA

No mais pequeno dos continentes, a Austrália tem 77,3% dos seus cidadãos com duas doses tomadas, enquanto a Papua-Nova Guiné ainda só vai nos 2,5%.

Em muitos casos, os países com taxas de vacinação mais baixas terão dificuldades em aceder ao mercado das vacinas e estarão dependentes de doações. Mas em algumas latitudes, há fatores naturais que tornam as campanhas de vacinação verdadeiros desafios à destreza humana. Para que as vacinas cheguem às populações, as equipas médicas têm de subir montanhas, atravessar lagos ou desbravar caminhos cobertos de neve.

PERU (CARLOS MAMANI / AFP / GETTY IMAGES)
INDONÉSIA (ZUL KIFLI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES)
FILIPINAS (EZRA ACAYAN / GETTY IMAGES)
ZIMBABWE (TAFADZWA UFUMELI / GETTY IMAGES)
MALÁSIA (ANNICE LYN / GETTY IMAGES)
BRASIL (MICHAEL DANTAS / AFP / GETTY IMAGES)
TURQUIA (CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de janeiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Vacinação desigual atrasa alívio

“Oito semanas com o dinheiro congelado. Ou enviam as vacinas, ou devolvem-nos o dinheiro.” O Presidente da Venezuela é dos mais inconformadas em relação ao processo de vacinação no mundo. Caracas entregou à OMS o equivalente a €100 milhões para beneficiar do mecanismo Covax de distribuição de vacinas, mas ainda não recebeu qualquer dose.

As sanções internacionais à Venezuela podem estar a agravar o problema, mas o protesto de Nicolás Maduro encerra uma preocupação universal: enquanto todos os países não controlarem a pandemia, o mundo não respirará de alívio. A campanha decorre de forma muito desigual. Enquanto países como a Venezuela têm menos de 10% da população vacinada, o Reino Unido (com mais de 70%) deu por concluída a fase das restrições e entregou a responsabilidade aos cidadãos. “É preciso aprender a conviver com o vírus”, defendeu o primeiro-ministro, Boris Johnson.

Um desafio à vacinação tem sido a metamorfose do SARS-CoV-2. Espanha, onde a variante Delta corresponde a 35% dos casos, alarma-se com o seu carácter altamente contagioso; outras latitudes já se confrontam com a nova estirpe, Lambda. Detetada pela primeira vez no Peru, onde predomina, já foi identificada nos Estados Unidos, Europa (dois casos em Portugal) e Austrália.

A braços com o forte aumento de infeções da variante Delta, esta semana a Austrália cancelou, pelo segundo ano consecutivo, os grandes prémios de Fórmula 1 e Moto GP, marcados para o outono. Ciente de que a batalha se trava fora de portas, enviou ontem para o vizinho Timor-Leste mais 40 mil doses da vacina. A prática tem beneficiado outras nações da região, onde a pandemia continua a ferro e fogo. Esta semana, o Japão declarou o estado de emergência em Tóquio até 22 de agosto. Vigorará, portanto, durante os Jogos Olímpicos.

Texto escrito com Ana França.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

O efeito Bin Laden no combate à pandemia

A taxa de vacinação contra a covid-19 no Paquistão é muito baixa. Para tal contribui a escassez de doses, mas também um sentimento antiocidental em torno das campanhas de inoculação. A operação militar norte-americana que identificou e executou Osama bin Laden numa cidade paquistanesa, há dez anos, dá algumas respostas…

Campanha sobre cuidados a ter durante a pandemia, desenvolvida pelo Crescente Vermelho do Paquistão LINKEDIN PAKISTAN RED CRESCENT

A corrida contra o tempo implícita nas campanhas de vacinação contra a covid-19 que decorrem por todo o mundo tem obstáculos acrescidos no Paquistão. Neste país de mais de 225 milhões de pessoas, a resistência às vacinas é uma realidade, alimentada por rumores que atribuem a origem da pandemia a uma conspiração estrangeira e encaram as vacinas como venenos.

“Há uma resistência popular às vacinas, especialmente nas áreas rurais”, diz ao Expresso Jassim Taqui, analista político paquistanês. “As pessoas acreditam numa teoria da conspiração que sustenta que as vacinas, tanto as chinesas como as ocidentais, visam esterilizar os muçulmanos para que a sua população seja sistematicamente limitada ou para alterar a sua genética, transformando as novas gerações em animais semelhantes aos macacos.”

Estas crenças levam muitos paquistaneses a viver a pandemia em negação. Mas algo mais contribui fortemente para esse ceticismo: o efeito Osama bin Laden.

A 2 de maio de 2011, o então líder da Al-Qaeda foi morto durante um ataque de forças especiais norte-americanas à casa onde vivia, na cidade paquistanesa de Abbottabad. Para localizar o terrorista, a CIA organizara, previamente, uma falsa campanha de vacinação contra a hepatite B na localidade onde se suspeitava que Bin Laden estivesse escondido. O objetivo era tão somente recolher amostras de ADN de crianças que se suspeitava serem próximas do homem mais procurado do mundo.

“A falsa campanha de vacinação que levou à morte de Osama bin Laden desempenhou um papel fundamental na resistência às vacinas ocidentais no Paquistão e, em geral, a todas as outras vacinas. Mesmo pessoas instruídas questionam a eficácia das vacinas, uma vez que não há indicações ou dados que sugiram que a inoculação garante a imunidade ou que os vacinados não voltem a ser atacados pela covid-19”, explica Jassim Taqui.

Foi o caso do primeiro-ministro Imran Khan e do Presidente Arif Alvi, a quem o coronavírus foi diagnosticado poucos dias após receberem a primeira dose da vacina. “As pessoas acreditam que os países que produziram essas vacinas são motivados, em parceria com a Organização Mundial do Comércio [OMC], por benefícios monetários enormes provenientes da comercialização dessas vacinas e não pelo combate à pandemia.”

Retaliação sobre a Save the Children

Descoberto o embuste em redor da operação de captura de Bin Laden, o Governo paquistanês expulsou do país a organização Save the Children, apesar de esta ONG negar que o médico paquistanês que orquestrou a falsa vacinação trabalhasse para si.

Paralelamente, sectores extremistas da sociedade paquistanesa cavalgaram a onda anti-vacinas, acusaram os voluntários ao serviço das campanhas de imunização de serem agentes da CIA e incentivaram a um sentimento antiocidental.

Em junho de 2012, a liderança dos talibãs paquistaneses emitiu um decreto religioso (fatwa) contra o programa de vacinação do Governo. Desde então, tornaram-se frequentes ataques contra equipas de vacinação, que já levaram à morte de dezenas de pessoas, a maioria pessoal de saúde do sexo feminino e agentes da segurança que trabalhavam no apoio às ações de vacinação.

Tudo contribui para que, dez anos depois da falsa campanha que detetou Bin Laden, os paquistaneses não esqueçam o estratagema e desconfiem da boa vontade de quem lhes bate à porta com o intuito de injetarem-lhes um líquido no corpo.

“Penso que [o episódio Bin Laden] prejudicou a confiança nas vacinas não só no Paquistão, mas em todo o mundo, onde existe desconfiança entre populações e governos, especialmente em zonas de conflito”, diz ao Expresso o epidemiologista paquistanês Rana Jawad Asghar, professor na Universidade de Nebraska (EUA).

Consequências também nos EUA

A 6 de janeiro de 2013, vários reitores de escolas de saúde pública dos EUA escreveram uma carta ao então Presidente Barack Obama comparando o uso de campanhas de vacinação pela CIA à infiltração, décadas antes, de espiões americanos na Peace Corps, agência federal dos EUA, criada em 1961 pelo Presidente John F. Kennedy, para ajudar os países em desenvolvimento.

Cerca de meio ano depois, o então diretor da CIA, John Brennan, proibiu o uso de programas de vacinação nas operações de espionagem. Mas pelo menos no Paquistão, o mal estava feito.

Em finais de janeiro passado, sensivelmente na mesma altura em que foram confirmados os primeiros casos de covid-19 no Paquistão, uma sondagem da Gallup Paquistão concluiu que 49% dos inquiridos não tencionavam tomar a vacina. E dos 46% que aceitavam, apenas 4% preferiam uma vacina produzida na Europa ou EUA.

Foi em contexto de grande ceticismo em relação à covid-19 que, a 3 de fevereiro, arrancou a campanha de vacinação no Paquistão. Na véspera, chegara ao país um carregamento de 500 mil doses da vacina chinesa da Sinopharm, uma gota nas necessidades do país, mas que permitiu iniciar o processo.

“De início, as autoridades sanitárias confiaram totalmente nos chineses, pensando que receberiam as vacinas de graça. Isso não aconteceu. Os chineses exigem dinheiro, embora afirmem que deram ao Paquistão meio milhão de vacinas como presente”, diz Jassim Taqui.

“Depois, o Governo decidiu comprar vacinas a empresas russas e britânicas. Atualmente, o Paquistão criou um laboratório conjunto com a China para encher localmente as vacinas [da chinesa CanSinoBio, de uma dose apenas]. E paga aos chineses por isso.”

4,84

em cada 100 paquistaneses já tomaram a vacina (até 13 de junho). Em Portugal, esse rácio é de 67,09

Rana Jawad Asghar identifica três razões para a baixa taxa de vacinação. “Antes de mais, o Paquistão teve problemas com o fornecimento de vacinas. Isso, por sua vez, obrigou o Governo a não convidar ativamente as pessoas a vacinarem-se, pois temia não poder atender à procura se muitas pessoas o solicitassem. Em segundo lugar, a desinformação sobre vacinas é galopante não apenas no Paquistão, mas em todo o mundo. A falta de informação nas áreas pobres e rurais pode ser uma terceira causa, menos importante.”

No Paquistão, as dificuldades em torno da vacinação têm sido nefastas para o combate contra outras doenças, para além da covid-19. Dadas como erradicadas em grande parte do mundo, a poliomielite e a febre tifoide continuam ativas no país.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Cuba abdicou da corrida às vacinas: arregaçou as mangas e está quase a ter a sua

As autoridades cubanas confiam que até ao fim do ano conseguirão imunizar toda a população contra a covid-19. Para tal, contam com pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento nos seus laboratórios. É a última conquista de um país pobre, mas eficiente ao nível da saúde pública, apesar das sanções do gigante vizinho setentrional. “O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos”, defende ao Expresso um historiador norte-americano

Cuba está no lote dos países que ainda não administraram qualquer dose de qualquer vacina contra a covid-19. No entanto, as autoridades de Havana esperam ter os seus mais de 11 milhões de cidadãos imunizados até ao fim do ano. O “milagre” é fácil de explicar: o país abdicou de disputar a ‘corrida internacional à vacina’ e lançou-se a produzir o seu próprio fármaco.

Neste momento, há quatro vacinas em desenvolvimento nos laboratórios cubanos: a Soberana 01 e a Soberana 02, do Instituto de Vacinação Finlay, e ainda a Abdala e a Mambisa, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia. A última tem a particularidade de ser administrada por via intranasal e não intramuscular. A 3 de março, o Presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, anunciou uma quinta candidata.

Até ao final do ano, Cuba espera produzir 100 milhões de doses, o que lhe permitirá atender às necessidades internas e exportar o restante. Esta meta coloca a ilha entre a elite dos países com capacidade científica no domínio da saúde pública.

“Era expectável que Cuba tivesse uma vacina para a covid-19 na fase de ensaios clínicos. Cuba avançou na biomedicina durante décadas. Os Estados Unidos opuseram-se com ferocidade a esses avanços, rotulando falsamente as instalações cubanas de laboratórios de armas biológicas”, comenta ao Expresso o historiador norte-americano Ronn Pineo, especialista na área da América Latina.

“Cuba já exportava vacinas para países em desenvolvimento necessitados, sem procurar lucro. E exportará esta nova vacina se ela se mostrar segura e eficaz, o que parece muito provável. No entanto, o bloqueio dos Estados Unidos está a dificultar o fornecimento de suprimentos, como frascos de vidro, por exemplo, na quantidade necessária.”

As dificuldades decorrentes do embargo acicatam o orgulho nacional implícito nos nomes patrióticos dados às vacinas: além das “Soberana”, “Abdala” é nome de um poema escrito pelo herói revolucionário José Martí e “Mambisa” é referência a guerrilheiros independentistas cubanos que combateram Espanha, no século XIX.

As vacinas mais adiantadas são a Soberana 02 e a Abdala, que avançaram, este mês, para a fase III dos testes clínicos, a última antes da aprovação para uso. A eficácia do fármaco está a ser avaliada em mais de 85 mil voluntários em Havana, Santiago de Cuba e Guantánamo e noutras 50 mil pessoas… no Irão.

Aliança Cuba-Irão

Esta colaboração é ditada por razões geopolíticas, já que Cuba e Irão são alvo de sanções dos Estados Unidos que penalizam também os sectores da saúde. Para o Teerão, um dos países do Médio Oriente mais atingidos pela covid-19, que já começou a vacinar com a russa Sputnik V, Cuba afigura-se como uma porta de saída do pesadelo.

“O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos. Qualquer que seja a justificação que os decisores políticos americanos erradamente pensaram existir durante a Guerra Fria, é óbvio que isso já não se aplica há mais de três décadas”, critica o professor da Universidade de Towson, Maryland (EUA).

No decorrer da pandemia, uma doação de máscaras, kits de testes rápidos e ventiladores feita pelo empresário chinês Jack Ma, fundador da empresa Alibaba, não conseguiu chegar a Cuba. A empresa de transporte norte-americana contratada para o efeito recusou-se a fazer o frete, escudando-se no Helms-Burton Act, que reforçou o embargo à ilha.

Noutro exemplo, duas empresas que habitualmente forneciam equipamentos médicos a Cuba — a IMT Medical AG e a Acutronic — terminaram a sua relação comercial com a ilha após serem compradas pela norte-americana Vyaire Medical Inc., em 2018.

Estes obstáculos obrigaram Cuba a procurar provisões em mercados mais distantes, como a China, a ter mais custos com o transporte e a sofrer demoras desnecessárias.

A pandemia de covid-19 deu relevância a outra vertente da política de saúde de Cuba que não cede ao peso das sanções: o envio de missões médicas para países em situações de emergência. Durante a primeira vaga, quando Itália era o epicentro da catástrofe, Cuba enviou 52 médicos para a região da Lombardia.

“Cuba tem sido muito generosa na ajuda a países em desenvolvimento por todo o mundo, fornecendo profissionais de saúde. Cuba vai aonde é convidada, independentemente da política do país anfitrião”, diz o professor Ronn Pineo. “Hoje, a ilha continua a mostrar um dos melhores rácios médico-população do mundo. Cuba não sofre com a falta de médicos ao enviá-los para o estrangeiro. Tem excedente de médicos.”

Um “exército de batas brancas”

Segundo o Banco Mundial, o rácio de Cuba é mesmo o melhor do mundo, com uma média de 8,4 médicos por mil habitantes (dados de 2018). Portugal tem 5,1 (dados de 2017).

Esse “exército de batas brancas”, como lhe chamou o líder cubano Fidel Castro, nasceu após a Revolução de 1959. A primeira missão foi enviada para o terreno em 1960, para o Chile, depois de um sismo na cidade de Valdivia ter provocado milhares de mortos.

400.000
profissionais de saúde cubanos já foram destacados para missões no estrangeiro, em pelo menos 164 países, para responder a crises de curto prazo, desastres naturais e, atualmente, à pandemia de covid-19

Em 2005, Fidel Castro batizou estes contingentes médicos de “Brigadas Henry Reeve”, em homenagem a um jovem norte-americano que combateu pela independência de Cuba, no século XIX. À época, o furacão Katrina tinha devastado, em particular, Nova Orleães. O histórico líder cubano ofereceu ajuda aos Estados Unidos, recusada pelo então Presidente George W. Bush.

Desde então, as “Brigadas” já proporcionaram ajuda em contextos de sismo (Paquistão e Indonésia), erupção vulcânica (Guatemala, 2018) ou emergências de saúde pública, como o surto de cólera no Haiti (2010) e a epidemia de Ébola na África Ocidental (2014).

Hoje, as missões médicas cubanas são um poderoso instrumento diplomático de soft power e uma das principais fontes de receita e de reconhecimento internacional para Cuba.

Para cada país beneficiário das suas missões médicas, Cuba celebra um acordo diferente. No caso da Venezuela, por exemplo, a ilha caribenha recebeu petróleo.

Muitas vezes, os médicos cubanos são encarados como uma espécie de guarda avançada do regime de Havana e, consequentemente, alvo de retaliações. No Brasil, após a eleição de Jair Bolsonaro, milhares de médicos cubanos que trabalhavam no Programa Mais Médicos receberam guia de marcha de regresso a casa. O mesmo ocorreu na Bolívia e no Equador após a saída do poder dos presidentes Evo Morales e Rafael Correa, respetivamente.

“Regras draconianas” nas missões médicas

Em julho do ano passado, a Human Rights Watch denunciou que o Governo cubano impõe “regras draconianas” aos médicos destacados nas missões, que “violam os seus direitos fundamentais”. “Os governos interessados em receber apoio de médicos cubanos deviam pressionar o Governo cubano para rever este sistema orwelliano, que dita com quem os médicos podem viver, apaixonar-se ou conversar”, defendeu então José Miguel Vivanco, diretor da organização para o continente americano.

“Uma forma de avaliar as condições dos profissionais de saúde cubanos nas missões no exterior é tentar averiguar quantos desses trabalhadores abandonam o programa. Quase nenhum o faz”, contrapõe o professor Pineo. “Aqueles que deixaram as missões expressaram, muitas vezes, descontentamento com as condições. As autoridades cubanas deviam fazer mais para levar a sério essas preocupações expressas. Todos os cubanos devem gozar do direito político de expressar as suas opiniões, seja em Cuba ou em missões médicas no estrangeiro.”

Em Cuba, o lema parece ser ‘fazer muito com pouco’. “É um modelo para muitos países”, disse o anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, quando visitou Cuba em 2014, elogiando o sistema de saúde local.

“Cuba teve um êxito notável nas medidas sanitárias mais importantes. Embora tenha um rendimento per capita de cerca de um décimo do dos Estados Unidos, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é bem mais baixa”, conclui o historiador norte-americano. “O foco de Cuba na saúde pública e na medicina preventiva, por oposição à medicina curativa, começa a explicar as suas conquistas na área da saúde.”

(IMAGEM As várias vacinas para a covid-19 produzidas em Cuba FACEBOOK DE JOSÉ ANGEL PORTAL MIRANDA, MINISTRO DA SAÚDE DE CUBA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

A nova ‘moeda de troca’ da política internacional

Vários países estão a usar a vacina para a covid-19 para projetar poder. Ao doarem milhares de doses, solucionam problemas, mas a prazo buscam compensações políticas

O arsenal de armas de soft power com que os Estados procuram projetar a sua influência no mundo sem recorrer à guerra ganhou um novo elemento — a vacina para a covid-19. Desde que soou o tiro de partida da imunização em todo o mundo, alguns países têm doado milhões de doses a terceiros com indisfarçável interesse político.

“A vacina está a ser usada como qualquer outro instrumento de política externa, é um meio para atingir um fim maior”, explica ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A prática assemelha-se a outros benefícios económicos que normalmente se utilizam como ‘cenoura’ destinada a premiar o comportamento de um Estado ou levar a um comportamento que se pretende.” Ajuda humanitária, alívio de dívida, assistência bilateral, dinheiro a fundo perdido ou empréstimos, acesso a tecnologia, participação em organizações internacionais… “Usa-se uma ferramenta económica, mas o objetivo é político.”

China, Índia e Rússia — pesos-pesados da geopolítica mundial e produtores da vacina — têm direcionado milhões de doses para fora do país, quando a inoculação das respetivas populações está numa fase inicial. “A vacina é tão ou mais valiosa para qualquer dos Estados em causa do que qualquer apoio económico ou financeiro, pelo que é provável que as consequências desta ação, o efeito permanente deste soft power, seja mais durável no tempo”, acrescenta o académico. “Esse apoio, em momentos difíceis, vai deixar uma marca consistente tanto nos decisores como na população.”

CHINA: Enterrar o “vírus chinês”

Para a China — onde começou a pandemia —, a vacina revelou-se uma oportunidade para acabar com a narrativa do “vírus chinês”, que Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos, propalou até à exaustão. Com quatro vacinas aprovadas (Sinopharm, Sinovac, CanSino e Sinopharm Wuhan), presenteá-las a terceiros é para Pequim um atalho eficaz para melhorar a imagem.

No início de fevereiro, a China anunciou a doação de vacinas a 14 países asiáticos e africanos e a intenção de “assistir” outros 38. As 100 mil doses enviadas para a Guiné Equatorial, por exemplo, garantiram a imunidade de 4% da população.

A dimensão asiática desta “diplomacia da vacina” é, para a China, muito condicionada pela rivalidade com a Índia. O primeiro país a receber a vacina chinesa de graça foi o Paquistão, arquirrival da Índia. Outro beneficiário foi o Sri Lanka, ‘campo de batalha’ entre chineses e indianos pelo domínio da Ásia do Sul. A 28 de janeiro chegaram ao país 500 mil doses oferecidas pela Índia. À espera, no aeroporto de Colombo, o Presidente Gotabaya Rajapaksa agradeceu a “generosidade”. Na Índia, a imprensa tratou o assunto como vitória diplomática sobre a China. Dias depois, Pequim fez chegar ao Sri Lanka 300 mil doses da sua vacina.

Com mais de 1400 milhões de habitantes, a China tinha vacinado, até 28 de fevereiro, apenas 3,65% da sua população — Portugal vai nos 8,68%. Essa circunstância não contém o regime comunista no seu esforço de afirmação externa. “O facto de as democracias estarem (mais) sujeitas a pressões e escrutínio públicos poderá promover a lógica de ‘os nossos primeiro’ e levar a que regimes autocráticos, menos limitados na alocação de recursos e na elaboração da sua política externa, possam dedicar-se mais a essa oferta”, diz Ponte e Sousa. “Os regimes autocráticos precisam mais desse apoio internacional para melhorar a sua imagem. Poderão ‘esforçar-se mais’ para obtê-lo.”

ÍNDIA: A farmácia do mundo

A pandemia permitiu à Índia mostrar os músculos ao nível da produção de vacinas e afirmar-se como “a farmácia do mundo”. O Instituto Serum (privado e com sede em Pune) é o maior fabricante mundial de vacinas — estima-se que 65% das crianças de todo o mundo recebam pelo menos uma vacina ali produzida. Diariamente, o Instituto fabrica 2,5 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford para a covid-19 (chamada localmente Covishield), destinada aos mercados externo e interno.

Outro laboratório indiano — Bharat Biotech, que exporta para mais de 120 países — desenvolveu uma vacina própria (Covaxin). Autorizada apenas na Índia, foi administrada ao primeiro-ministro Narendra Modi.

A “diplomacia da vacina” tem permitido a Nova Deli rentabilizar a política de “vizinhança primeiro”, teorizada por Modi, e dar réplica ao avanço da China. Nesse espírito, Sri Lanka, Nepal, Maldivas, Maurícias, Butão, Bangladesh, Seychelles, Afeganistão e Myan­mar já receberam doações da Índia.

Com base no princípio filosófico indiano Vasudhaiva Kutumbakam — frase em sânscrito, encontrada em textos hindus, que significa “o mundo é uma família” —, a Índia já começou a doar vacinas para fora da região. Nas redes sociais, Nova Deli vai publicitando a chegada de carregamentos da Covishield a um novo país com a hashtag #VaccineMaitri (“vacina pela amizade”). Só esta semana, pelo menos Ruanda, Quénia, Nigéria, Angola, Senegal e Camboja receberam doses made in Índia. Até quarta-feira o país enviara 45,6 milhões para 46 países — 7,1 milhões a título gratuito.

RÚSSIA: Reforçar estatuto

Ao batizar a vacina de Sputnik V — recuperando uma designação que remete para os anos gloriosos da exploração espacial da União Soviética —, a Rússia não escondeu a intenção de a usar para reclamar estatuto internacional.

A Sputnik V foi a primeira vacina para a covid-19 aprovada em todo o mundo para uso doméstico, no longínquo 11 de agosto de 2020. Despertou dúvidas acerca da sua eficácia ao não cumprir todas as etapas do processo de produção. O Presidente Vladimir Putin disse que a tomaria, mas até ao momento ainda não o fez. Fora de portas, porém, a Sputnik-V já está a ser usada como bandeira.

A Alrosa — empresa russa parcialmente estatal, líder mundial da mineração de diamantes — anunciou a compra de dezenas de milhares de doses dessa vacina para oferecer a Angola e ao Zimbabwe, países onde opera.

Na ânsia de exportar a sua vacina, o Kremlin conta com um ‘aliado’ inesperado: a resistência do povo à vacinação, que tem feito sobrar doses. “Pergunto-me porque está a Rússia a oferecer, teoricamente, milhões e milhões de doses, embora não avance o suficiente na vacinação do seu próprio povo”, insinuou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decerto incomodada com a interferência russa na coordenação europeia. É que, por força dos atrasos na entrega das vacinas contratualizadas por Bruxelas, a Rússia já conseguiu vender a Sputnik-V à Hungria.

OUTROS EXEMPLOS

SÉRVIA — Comprou vacinas à China, à Rússia e à Pfizer e distribuiu uns milhares de doses pela vizinhança, em especial um país com quem estava em guerra há menos de 20 anos: Bósnia-Herzegovina. Antes ofereceu vacinas à Macedónia do Norte e Montenegro.

ISRAEL — Quase a tornar-se o primeiro a vacinar toda a população, ofereceu doses a países que aceitaram transferir as suas embaixadas para Jerusalém (Guatemala, Honduras, República Checa). Comprou vacinas à Rússia para entregar à Síria em troca da libertação de uma israelita.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS — A riqueza proveniente do petróleo permitiu-lhe comprar vacinas para oferecer a países onde tem interesses comerciais ou estratégicos. As Seicheles (100 mil habitantes), onde têm projetos energéticos e são parceiros no combate à pirataria, receberam 50 mil doses.

(ILUSTRAÇÃO PIXAHIVE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui