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Irão e Venezuela. Cercados por sanções e pela amizade com a Rússia

Castigados por sanções, Irão e Venezuela desesperam por aumentar as suas exportações de petróleo. O boicote à Rússia pode abrir portas, mas há obstáculos no caminho

Encontro entre os Presidentes da Venezuela e do Irão, Nicolas Maduro e Ebrahim Raisi, em Teerão, a 11 de junho de 2022 PRESIDÊNCIA IRANIANA

A invasão da Ucrânia expôs a dependência energética da Europa em relação à Rússia. Inversamente, identificou o boicote ao petróleo e gás russos como a arma mais eficaz para ferir o regime de Vladimir Putin. Para os países que querem pressionar Moscovo deixando de lhe comprar energia, Irão e Venezuela poderiam ser fornecedores alternativos. Ambos são grandes produtores de petróleo — o Irão controla também as segundas maiores reservas mundiais de gás natural — e vivem asfixiados por sanções. Um aumento das exportações traria grande alívio às finanças nacionais. Mas subsistem barreiras políticas que o inviabilizam.

IRÃO
Economia é importante, segurança é fundamental

Nas semanas que antecederam a invasão da Ucrânia, houve notícias de iminente novo acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão. Sete países (incluindo a Rússia) dialogam, desde abril de 2021, em quatro hotéis de Viena, com vista a reativar o acordo de 2015 (JCPOA, na sigla inglesa), fragilizado pela saída dos Estados Unidos nos anos de Donald Trump. A atual condição de pária levou Moscovo a mostrar as garras e a complicar a obtenção de um acordo final.

“A Rússia prefere manter a energia cara, para poder usá-la como alavanca contra o Ocidente”, diz ao Expresso Javad Heiran-Nia, do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, em Teerão. “Por essa razão, adiou as negociações com o Irão, solicitando garantia por escrito dos EUA de que as suas relações comerciais com o Irão não seriam prejudicadas” num novo acordo.

Os russos não parecem dispostos a facilitar o que é urgente para os iranianos: o aumento das exportações de recursos energéticos para afastarem o espectro da bancarrota. “A Rússia procura usar o Irão como instrumento para contornar as sanções de que é alvo”, acrescenta o analista. “Isto não é interessante para o Irão após o ressurgimento do acordo nuclear e porá em risco os seus interesses.”

A boa relação entre Irão e Rússia é tão antiga quanto a própria República Islâmica: a União Soviética foi o primeiro país a reconhecê-la, em 1979. Acentuou-se em agosto passado, com a posse de um novo Presidente em Teerão.

“A estratégia do Irão na era Ebrahim Raisi passa por virar a oriente e expandir a relação com China e Rússia em vez de EUA e União Europeia. Por essa razão, nunca condenou o ataque à Ucrânia”, diz ao Expresso o politólogo iraniano Mohammad Eslami, da Universidade do Minho. O Irão absteve-se em duas das três resoluções condenatórias da Assembleia-Geral da ONU e votou derrotado contra a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

“O que a política externa iraniana nos últimos dois meses sugere é que o Irão vê no isolamento da Rússia a ocasião para ampliar o seu relacionamento com esse país, visado por sanções”, diz Eslami. “Como não há espaço para novas sanções do Ocidente ao Irão, este não tem limitações para trabalhar com a Rússia.”

Além da influência russa, outras razões condicionam a capacidade exportadora iraniana. Por um lado, o alto consumo interno de energia. Por outro, problemas que subsistem entre Irão e Europa. “Iniciaram ‘negociações críticas’ durante a presidência de Hashemi Rafsanjani [1989-1997]. Nos mandatos de Mohammad Khatami [1997-2005], esse diálogo deu lugar a negociações construtivas. Mas a questão nuclear e as sanções não melhoraram a relação”, diz Heiran-Nia. “Com Hassan Rohani [2013-2021], a relação melhorou um pouco após o acordo nuclear. Mas esta questão, como os direitos humanos, a política regional, os mísseis do Irão e o problema dos prisioneiros são temas conflituantes.”

A 16 de março passado, foram libertados dois iraniano-britânicos presos em Teerão, acusados de espionagem e conspiração para derrubar o Governo. Não são caso único na República Islâmica, que não reconhece a dupla cidadania e usa este tipo de casos como moeda de troca para outros fins. Segundo a imprensa iraniana, a libertação de Nazanin Zaghari-Ratcliffe e Anoosheh Ashoori teve como contrapartida o pagamento de uma dívida do Reino Unido ao Irão equivalente a €463 milhões.

“Pode haver discussões sobre as exportações de gás iraniano durante a guerra, mas os europeus não vão querer tornar-se dependentes de um país com o qual têm muitos problemas”, conclui Heiran-Nia. “Claro que o Irão quer melhorar a sua situação económica, mas no discurso dos responsáveis iranianos a segurança tem sido sempre mais importante”, acrescenta Eslami. “O Irão prefere confiar na Rússia como aliado fidedigno.”

VENEZUELA
Em contacto com os Estados Unidos

As reações internacionais à guerra na Ucrânia tornaram a Rússia o país mais sancionado do mundo — ultrapassou o Irão. Do grupo faz parte também a Venezuela, que poderia ganhar com a atual conjuntura, não fosse o forte alinhamento com Moscovo, em especial desde a era de Hugo Chávez (1999-2013), que aproveitou o boom do petróleo para comprar aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

“A Venezuela e a Rússia são parceiros estratégicos. Nicolás Maduro está do lado de Putin e contam com o apoio do gigante chinês”, diz ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa, nascida na Venezuela, referindo o Presidente do país. Com a Europa à procura de fontes energéticas alternativas à Rússia, “a Venezuela poderia beneficiar se tivesse capacidade operacional para pôr a funcionar a infraestrutura que a produção e exportação de petróleo requerem”. A académica crê que “isto pode demorar e exige alterações políticas que não parecem estar a ocorrer”.

O politólogo argentino Ignacio Labaqui corrobora ao Expresso que “o balanço de mais de 20 anos de governos chavistas tem sido negativo para a produção de petróleo na Venezuela”. A seu ver, “a deterioração das infraestruturas e a falta de investimento resultaram numa queda drástica da produção, ao ponto de, em abril de 2020, o país produzir menos de 350 mil barris de petróleo por dia.” Em abril de 2002, a Venezuela produzia diariamente quase 3 milhões de barris. Este ano, a cifra situa-se acima dos 600 mil. Se as sanções fossem levantadas, poderia injetar no mercado mais 400 mil barris diários.

A relação com a Rússia tem permitido à Venezuela minimizar o impacto das sanções. A aliança fez-se sentir em crises passadas. Em 2008, Caracas foi das poucas capitais a seguirem Moscovo e a reconhecerem a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul, territórios da Geórgia.

Mas a Venezuela não parece disposta a deixar-se arrastar para as dificuldades que se projetam para a Rússia. Não participou nas recentes votações contra Moscovo na Assembleia-Geral da ONU. E no início de março, com a guerra em curso, Maduro recebeu uma delegação política dos EUA para uma reunião que incluiu a “segurança energética”. “Posso descrevê-la como respeitosa, cordial, muito diplomática”, disse o chefe de Estado venezuelano.

“As sanções que afetam a comercialização do petróleo não foram levantadas. É provável que Maduro peça aos EUA e aos europeus que reconhecem Juan Guaidó como presidente [interino] da Venezuela que deixem de o fazer, antes de começar a abandonar a relação com a Rússia”, conclui Labaqui. O analista prevê que “o Governo dos EUA peça progressos no respeito dos direitos humanos como condição para suspender as sanções.”

OS CINCO PAÍSES MAIS SANCIONADOS DO MUNDO

RÚSSIA — Reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk, a 21 de fevereiro, e invadir a Ucrânia, três dias depois, originou um tsunami de sanções que tornou a Rússia o país mais boicotado do mundo. Pelo menos 6379 indivíduos, 979 entidades, 13 barcos e três aviões estão sancionados (7374, no total).

IRÃO — As primeiras sanções à República Islâmica foram decretadas pelos EUA após o assalto à sua embaixada em Teerão (1979). Hoje, o programa nuclear e a hostilidade com Israel justificam o grosso das 3616 sanções impostas ao Irão.

SÍRIA — A guerra civil iniciada em 2011 é a fonte da esmagadora maioria das 2608 sanções em vigor. O regime de Bashar al-Assad, que tem na Rússia um aliado, é penalizado pela repressão de populações civis.

COREIA DO NORTE — Muitas das 2077 sanções foram adotadas após o primeiro teste com armas nucleares (2006). O programa nuclear de Pyongyang é a grande preocupação.

VENEZUELA — As sanções têm como principal motor a relação tensa com os EUA, acentuada pela revolução bolivariana de Hugo Chávez (1999). Hoje, o país enfrenta 651 sanções.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

A Rússia não está isolada no seu ataque à Ucrânia: estes são os seis países que estão solidários com Moscovo

A condenação generalizada à invasão russa de território da Ucrânia não teve repercussão num conjunto de países. A maioria deles é castigada, há anos, por sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos

BIELORRÚSSIA

A entrada de tropas russas na Ucrânia concretizou-se por três frentes, uma das quais a partir de território bielorrusso. O país liderado por Aleksandr Lukashenko, que está no poder desde 1994 — longevidade que lhe vale o epíteto de “o último ditador da Europa” —, é um sólido aliado da Rússia.

Entre 10 e 20 de fevereiro, a realização de exercícios militares entre forças russas e bielorrussas contribuiu fortemente para a escalada da tensão na região. E com razão, já que no dia depois de terminarem, Moscovo reconheceu a independência das repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, ao que se seguiu a invasão da Ucrânia.

A permanência das tropas russas em território bielorrusso terminadas as manobras militares conjuntas indiciava o pior. A Bielorrússia deve lutar pela “sua independência” e contra a “ditadura”, apelou então a líder da oposição Svetlana Tikhanovskaya — tida pelo Ocidente como a vencedora das presidenciais de 2020 e que vive exilada —, considerando que a soberania do seu país estava ameaçada pela presença militar russa.

No próximo domingo, poderá ser dado mais um passo no crescente domínio de Moscovo sobre Minsk. Os bielorrussos estão convocados para se pronunciarem num referendo sobre alterações à Constituição e entre os assuntos em questão está a possibilidade de o Presidente Lukashenko autorizar a instalação de armas nucleares russas naquela antiga república soviética.

VENEZUELA

“A Venezuela está com Putin e com a Rússia, está com as causas corajosas e justas do mundo, e vamo-nos aliar cada vez mais”, reagiu, de forma inequívoca, Nicolás Maduro, às notícias da invasão russa da Ucrânia. O Presidente venezuelano acrescentou que a NATO e os Estados Unidos querem acabar militarmente com a Rússia por estarem “habituados a fazer o que querem no mundo”.

Na semana passada, quando da passagem por Caracas do vice-primeiro-ministro russo Yuri Borisov, os dois países assinaram um acordo de cooperação militar. Maduro defendeu que este compromisso “confirmou o caminho para uma poderosa cooperação militar entre Rússia e Venezuela para defender a paz e a soberania”.

As relações entre Moscovo e Caracas estreitaram-se sobretudo com Hugo Chávez, o antecessor de Maduro que ocupou o Palácio de Miraflores entre 1999 e 2013. Então, o venezuelano aproveitou o boom do petróleo, de que a Venezuela é produtora, e comprou aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

Para a Venezuela, a Rússia é um mercado que permite contornar o efeito das sanções internacionais decretadas ao país. Este alinhamento entre os dois países já se fez sentir noutras crises. Em 2008, a Venezuela foi dos poucos países a reconhecer a independência das regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul, em território da Geórgia.

SÍRIA

O grande aliado da Rússia na conturbada região do Médio Oriente tornou-se o segundo Estado em todo o mundo a reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A decisão confirma a solidez da relação entre estes dois países.

É na Síria — em Tartus — que Moscovo tem a sua única base militar que lhe permite o acesso aos mares quentes (no caso o Mediterrâneo) e por isso navegáveis. A conservação deste local estratégico, num país que está em guerra desde 2011, justifica o apoio direto e incondicional da Rússia a Bashar al-Assad, que deve a Vladimir Putin a sua permanência no poder.

No atual contexto, foi a vez do regime sírio colocar-se ao lado das opções belicistas de Moscovo. “A Síria apoia a decisão do Presidente Vladimir Putin de reconhecer as repúblicas de Luhansk e Donetsk”, afirmou Faisal Mekdad, o ministro sírio dos Negócios Estrangeiros. “O que o Ocidente está a fazer contra a Rússia é igual ao que fizeram contra a Síria durante a guerra terrorista.”

À semelhança da Venezuela, também a Síria reconheceu, no passado, as ex-repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como Estados independentes.

NICARÁGUA

Daniel Ortega, na presidência da Nicarágua desde 2007, esteve com a Rússia desde a primeira hora desta crise. “O Presidente Putin deu hoje um passo com o qual o que fez foi reconhecer algumas repúblicas que, desde o golpe de 2014, não reconheceram os governos golpistas [na Ucrânia] e estabeleceram o seu governo e lutaram”, disse na segunda-feira, na sequência do reconhecimento russo da independência de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

Ao mencionar o golpe de 2014, Ortega referia-se à deposição do então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, na sequência das manifestações populares que duraram meses e que ficaram conhecidas como Euromaidan. Este protesto saiu, pela primeira vez, às ruas de Kiev na noite de 21 de novembro de 2013, após a decisão do Governo de suspender a assinatura de um Acordo de Associação entre a Ucrânia e a União Europeia (UE). Hoje, Yanukovych vive exilado na Rússia.

Para o líder da Nicarágua, a UE e os Estados Unidos “vêm cercando e ameaçando a Rússia” desde 2014. “A Ucrânia está a procurar uma maneira de entrar na NATO, e entrar na NATO é dizer: vamos à guerra com a Rússia. Isso explica porque a Rússia age do jeito que age. Está simplesmente a defender-se.”

A boa relação entre a Rússia e a Nicarágua decorre muito da experiência guerrilheira de Daniel Ortega, na década de 1980, nas fileiras da Frente Sandinista (marxista). Na cadeira do poder, continua a verbalizar a sua oposição à influência dos Estados Unidos na América Central e — como o revela o problema da Ucrânia — em todo o mundo.

Os EUA, por seu turno, consideraram fraudulentas as eleições presidenciais de 7 de novembro do ano passado, na Nicarágua — que oficialmente Ortega venceu com 76% dos votos — e impuseram sanções a representantes do Estado.

CUBA

É outro país castigado por sanções internacionais, que vive sob embargo dos Estados Unidos desde 1958. Já com a ofensiva russa sobre a Ucrânia em curso, uma delegação parlamentar da Rússia, encabeçada pelo presidente da Duma (Parlamento), Vyacheslav Volodin, realizou uma visita de dois dias à ilha que é governada pelo Partido Comunista há mais de 60 anos.

“A determinação dos Estados Unidos em impor a progressiva expansão da NATO até às fronteiras da Federação Russa constitui uma ameaça à segurança nacional deste país e à paz regional e internacional”, defendeu o Ministério cubano dos Negócios Estrangeiros, num comunicado divulgado pouco antes da chegada dos políticos russos. “Cuba defende uma solução diplomática através do diálogo construtivo e respeitoso.”

https://twitter.com/cubaminrex/status/1496694614954237958

A visita à ilha caribenha foi facilitada por uma decisão, esta semana, da câmara baixa da Duma, no sentido de adiar para 2027 o pagamento devido por Havana de algumas tranches da dívida cubana. Em causa está uma verba de 2300 milhões de dólares (2000 milhões de euros), concedidos pela Rússia a Cuba entre 2006 e 2019, para investimentos nas áreas da energia, dos metais e em infraestruturas de transportes.

NAURU

Antes de qualquer explicação, impõe-se localizar este país no mapa-mundo. Independente do Reino Unido desde 1968, Nauru é uma ilha do Pacífico que, em 1999, aderiu às Nações Unidas. Nesta organização, Nauru representa também os interesses da Ossétia do Sul, uma ex-república separatista da Geórgia que autoproclamou a sua independência em 2008, prontamente reconhecida pela Rússia.

A relação privilegiada entre Nauru e a Ossétia do Sul começou a ganhar forma em 2009 quando a pequena ilha seguiu a posição de Moscovo e também procedeu ao reconhecimento da soberania desse território, e também da Abecásia.

Hoje, esse precedente faz com que Nauru seja apontado como já tendo reconhecido a independência das regiões secessionistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, embora não haja conhecimento de qualquer declaração governamental nesse sentido.

A expectativa surge em função da relação próxima que Nauru tem desenvolvido com a Rússia. Para um território com poucos recursos, qualquer assistência económica é sempre bem-vinda e gera consequências políticas — foi o que aconteceu entre os dois países. O início desta proximidade terá sido uma conferência de doadores, em 2005, organizada pelas autoridades de Nauru para apresentação da sua Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e angariação de financiamento. A Rússia correspondeu como nenhum outro país.

A relação foi sendo sucessivamente alimentada com outros cheques. Segundo o jornal russo “Kommersant”, em 2009 — pouco antes da ilha reconhecer a independência das duas repúblicas do Cáucaso —, Moscovo desembolsou 50 milhões de dólares (45 milhões de euros) em ajuda humanitária a Nauru.

(FOTO Visita de Vladimir Putin e Bashar al-Assad, Presidentes da Rússia e da Síria, à Catedral Ortodoxa de Damasco, a 7 de janeiro de 2020, na Síria KREMLIN)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um boicote olímpico para Xi Jinping ver

Vários países decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim, que arrancam hoje. Com que eficácia?

Há oito anos, por esta altura, o mundo temia que a Rússia invadisse a Ucrânia. Para desanuviar a tensão, a 28 de janeiro de 2014 União Europeia e Rússia reuniram-se numa cimeira, em Bruxelas, que terminou com um aperto de mão entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. A trégua era aparente: passado menos de um mês, tropas russas entravam em território ucraniano e a 18 de março seguinte a Crimeia era anexada.

De permeio, a Rússia esbanjou capacidade e organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. “Penso que Putin aceitou participar na cimeira de Bruxelas porque queria assegurar que os Jogos se realizassem sem boicotes e constituíssem uma vitrina diplomática”, diz ao Expresso Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho. “Putin organizou os seus Jogos e assentou a sua imagem como parte de um clube. Instrumentalizou muito bem os Jogos de Sochi.”

O evento não escapou a polémicas, com protestos em todo o mundo contra a perseguição à comunidade LGBT russa, mas nenhum país o boicotou. Oito anos depois, é o Presidente chinês, Xi Jinping, que está confrontado com o êxito de uns Jogos Olímpicos em contexto de grande pressão política.

Direitos humanos no centro

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno que começam hoje em Pequim. Justificam-no com violações dos direitos humanos pelo regime chinês — da questão do Tibete à vigilância draconiana da população, de Hong Kong à repressão da minoria uigure. Putin confirmou a sua presença em Pequim.

“Este boicote diplomático acontece num momento de grande tensão entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, não é assim tão diferente dos boicotes históricos da Guerra Fria”, afirma Sandra Fernandes. Assinala a relação de poder entre “uma China expansionista, muito segura de si, e países que tentam mostrar que há oposição a essa assertividade”. Por outro lado, “na atualidade, a agenda dos direitos humanos e dos valores universalistas é central”, com grande exposição de violações dos direitos humanos nas redes sociais.

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas

Um boicote político neste contexto significa que os países que o aprovam não se farão representar nas cerimónias de abertura e de encerramento, ainda que enviem atletas para competir. Mancha o evento, mas não compromete desportivamente os segundos Jogos Olímpicos na China em 14 anos.

A interrogação é, pois, legítima. Que eficácia têm, na verdade, boicotes e sanções materiais (económicas, financeiras ou comerciais)? Tomemos como exemplo a Coreia do Norte, país isolado do mundo e castigado com várias sanções internacionais.

“A Coreia do Norte guia-se por um modelo de autossuficiência [doutrina Juche] que a leva, em certas alturas, a rejeitar assistência da comunidade internacional, apesar de referências a dificuldades económicas pelo próprio regime, às quais atualmente acresce a pandemia”, diz ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “O facto de ser um país muito fechado resulta de conjunturas internas que o impedem de procurar algo melhor, mas também é reforçado pelas sanções económicas, que o isolam ainda mais.”

Sanções sem efeito

As sanções a Pyongyang têm como principal objetivo forçar o regime a abdicar do armamento nuclear. “Estando uma intervenção na península coreana fora de questão, aplicar sanções tornou-se meio preferencial para lidar com este país e as suas ambições nucleares.” O peso que o regime de Kim Jong-un lhes atribui está exposto: sempre que se perspetivam negociações, o levantamento das sanções surge como principal exigência norte-coreana para fazer cedências. O mesmo acontece com o Irão.

Porém, demonstrações bélicas como a de domingo passado, quando a Coreia do Norte testou um míssil balístico Hwasong-12, de médio e longo alcance — foi o quinto lançamento de mísseis só em janeiro —, provam que as sanções não surtem efeito e podem até estar a provocar um efeito contrário ao desejado. “Ao invés de levarem à desnuclearização da Coreia do Norte, promovem maior apego ao programa, reforçando a ideia, a nível interno, de que a ameaça americana e da comunidade internacional é real, logo a aposta no desenvolvimento do nuclear torna-se necessária para fazer face ao ‘inimigo’”, diz Durão. Para Pyongyang, “as sanções são exemplo da ‘atitude hostil’ de Washington e seus aliados”.

No “quintal” dos Estados Unidos, também a Venezuela é pressionada de fora, visando uma mudança de regime. “As sanções internacionais, sobretudo dos Estados Unidos, não são eficazes quando há apoio de outros poderes, como a Rússia, Irão e outros menos formais, mas muito bem organizados, como a criminalidade”, explica ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa. “As sanções provocaram uma mudança económica — o dólar passou a circular livremente, empresas públicas estão a ser privatizadas —, mas não política. O Governo de Nicolás Maduro continua a controlar as instituições, meios de comunicação e Forças Armadas.”

Não muito longe, Cuba sofre há décadas um embargo dos Estados Unidos. “A ditadura dura há mais de 60 anos, primeiro com apoio da ex-União Soviética e depois do Governo venezuelano”, acrescenta. “Vemos mudanças no modelo económico, mas pouco ou muito pouco a nível político.”

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas. “Procuram outro tipo de alianças, se possível”, conclui Sandra Fernandes. “No contexto atual, em que os Estados Unidos perdem a sua posição hegemónica, ou pelo menos a partilham com outros, isso é cada vez mais real. A universalidade na adoção das sanções é cada vez mais difícil.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2022

Médicos lusodescendentes formados na Venezuela: Portugal não os quer, Itália e Espanha aproveitam

Impedidos de exercer medicina em Portugal, alguns lusovenezuelanos agarram as oportunidades que lhe oferecem outros países da União Europeia. Laura, que trabalhava num lar, foi para Itália tratar de doentes de covid-19 e acabou por exercer a sua especialidade. “Causa uma certa dor que no nosso país, para onde viemos a pensar em maiores oportunidades, o processo de reconhecimento dos nossos diplomas seja tão lento, demorado e até difícil”, lamenta. Christian, que em Portugal trabalha na construção civil, está a tratar da papelada para começar a trabalhar em Espanha

A pandemia abriu a janela da esperança a dezenas de profissionais de saúde formados na Venezuela que desesperam por ver reconhecidas as suas valências académicas em Portugal. Mas essa expectativa não tem passado de ilusão. Alguns médicos — que ganham a vida a trabalhar na construção, em fábricas ou a fazer limpezas — têm-se virado para outros países europeus para exercerem a profissão que os apaixona e para a qual se sentem competentes.

É o caso de Laura Domínguez, médica neonatologista nascida na Venezuela há 52 anos, filha de pai português e a viver em Oiã, no distrito de Aveiro, desde outubro de 2019. Sem hipótese de exercer medicina em Portugal, está desde há semanas a trabalhar em Itália. “Cheguei a Itália para ajudar a lidar com a covid-19, mas quando viram que sou pediatra colocaram-me num serviço de neonatologia”, diz ao Expresso. “Estou muito grata porque, neste momento, estou a exercer a minha especialidade. Deram-me a oportunidade que Portugal não me deu.”

Laura faz parte de um grupo de 18 profissionais de saúde formados na Venezuela que correspondeu a um apelo da associação “Venezuela: A pequena Veneza”, criada em 2017 e sedeada em Roma, cujo nome alude à origem etimológica do nome do país sul-americano. Reforçou o dispositivo médico nos hospitais italianos. De Portugal foram quatro, de Espanha outros quatro, os restantes já viviam em Itália.

Foram contratados pela administração regional de Molise, região que tem muitos habitantes emigrados na Venezuela e que também acolhe uma expressiva comunidade venezuelana. Sem homologação académica reconhecida, ficaram aptos a exercer graças a uma derrogação temporária da obrigação do reconhecimento do título académico obtido no estrangeiro a profissionais de saúde (Artigo 13 do decreto “Cura Itália”, de 17 de março de 2020), no quadro do estado de emergência. “Não é uma homologação direta per se, é uma situação excecional”, esclarece Laura. “Mas pode abrir portas, face às necessidades.”

À espera das provas

Esta lusovenezuelana trabalha num hospital público em Campobasso, no sul de Itália. Tem contrato inicial de um mês, renovável em função da evolução da pandemia e dos recursos disponíveis para contratar pessoal. Laura está disposta a continuar o tempo que for preciso. “Em Portugal, só vou começar a fazer as provas em novembro, tenho muito tempo de espera. Há uma prova em novembro, outra em janeiro, depois outra em março… Quando me der conta, estamos em 2023 e o processo ainda não terminou.”

Para trabalhar em Itália, só teve de enviar documentação comprovativa da sua formação. “No trabalho não estou sozinha, estou com uma equipa médica que observa os meus procedimentos e avalia o meu trabalho. Em Portugal, podia também estar a ser acompanhada por outros médicos.”

“A tristeza que sinto é que muitos países abriram as portas a pessoas na minha situação. Sou portuguesa, quero regressar a Portugal e ficar no país.”

Laura Domínguez
médica lusovenezuelana a trabalhar em Itália

Os 16 anos de experiência acumulados a trabalhar no público e no privado, em Caracas, levam-na a responder ao desafio em Itália com confiança. O principal obstáculo é a língua. “Mas muitas pessoas com quem trabalho aqui falam espanhol e inglês, e eu defendo-me nessas línguas. Mas estou a estudar italiano. Muitos médicos que estão aqui são ítalo-venezuelanos. Apoiamo-nos todos. A medicina é um trabalho em equipa. Estou feliz, é uma experiência boa e bonita.”

A dificuldade das provas

Laura Domínguez saiu da Venezuela com a filha adolescente, uma irmã e duas sobrinhas. Chegada a Portugal, começou a trabalhar em lares, onde fez de tudo um pouco e aproveitou para desenferrujar o português. A meio do ano passado, iniciou o processo de homologação do seu diploma na Universidade de Coimbra. “Pensava que tinha de apresentar-me a provas em novembro de 2020, mas disseram-me que era só em novembro de 2021.”

Com tanto tempo de espera, decidiu ir à luta. “Queria saber como era trabalhar num sistema de saúde da Europa. Aqui estou, fui muito bem recebida e sinto-me segura. Tem sido uma experiência excelente. Gostava que tivesse acontecido em Portugal…”, lamenta.

“Compreendo e concordo que os nossos documentos tenham de ser analisados, há que verificar que a pessoa é efetivamente médica. Mas com uma pandemia tão difícil em Portugal, as portas fecharam-se-nos. Acho que não confiam em nós, pensam que não somos médicos… os meus colegas que fizeram as provas dizem que são muito difíceis, e estão convencidos de que a ideia é não reconhecer o título…”

É o caso de Christian de Abreu, médico lusodescendente de 37 anos que vive em Esposende, no distrito de Braga, e que o Expresso entrevistou há sensivelmente um ano, quando ainda aguardava pelas provas. Já as fez: foi aprovado na de português e reprovou na prova escrita de conhecimentos de medicina. “A prova é feita não para médicos de clínica geral, mas para especialistas. Existe não para avaliar os médicos, mas para chumbá-los.”

Christian poderá repetir a prova em janeiro de 2022, mas não ficou à espera dessa oportunidade para organizar a vida. Presentemente, está a tratar da papelada em Vigo (Galiza) para exercer medicina em Espanha, o que espera que aconteça em breve.

Ir quatro vezes a Vigo numa semana

O processo junto do Ministério da Educação e Formação Profissional já foi concluído. Agora, Christian está a tratar dos requisitos exigidos pelo Colégio Médico de Pontevedra. “Em Espanha, a burocracia reside no processo para arranjar trabalho, não no reconhecimento no grau”, diz. “Para os venezuelanos que vivem em Espanha o processo é muito mais rápido, os portugueses são estrangeiros.”

Christian realizou a primeira viagem a Espanha a 30 de outubro de 2020. Desde então, chegou a ir quatro vezes a Vigo na mesma semana. Quando começar a trabalhar em Espanha, continuará a viver em Portugal e a percorrer diariamente mais de 100 quilómetros para os dois lados. Nada que o preocupe, habituado que estava a distâncias muito maiores na Venezuela.

Por acordo entre os membros da União Europeia, um médico reconhecido por um Estado-membro pode exercer noutro país da UE se tiver exercido a profissão nesse país durante três anos. Mesmo perante essa possibilidade, o regresso de Christian a Portugal não é uma garantia, já que em Espanha os ordenados são mais altos.

Neste vaivém através da fronteira ibérica, o lusovenezuelano não esquece reações à sua situação. Numa das viagens, a 5 de fevereiro passado, deu boleia a quatro médicos na sua situação para irem tratar de burocracias numa agência tributária na Galiza. “Seguíamos cinco, no meu carro. Quando regressávamos, na fronteira, um agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteira [SEF] interpelou-nos. Ficou muito surpreendido por haver médicos a atravessar a fronteira, com tanta necessidade deles em Portugal.”

Outra reação que o marcou aconteceu em Tui, onde fora abrir conta bancária, um requisito obrigatório para poder celebrar um contrato de trabalho. “A gestora do Caixa Bank não percebia por que razão um médico que podia exercer em Espanha trabalhava nas obras em Portugal. Tiveram de verificar que o meu nome era correto e que não estava a mentir.”

“É uma vergonha, mas esse é o meu trabalho em Portugal. Preciso de comer e os meus filhos também.”

Christian de Abreu
Médico lusovenezuelano, que em Portugal trabalha na construção civil

Talvez por ainda não ter realizado provas, Laura Domínguez projeta um futuro como médica em Portugal. “Sou portuguesa. O meu pai ensinou-me a gostar de Portugal, a minha filha está em Portugal, quero voltar e exercer medicina em Portugal.”

Enquanto isso não é possível, aproveita ao máximo a experiência em Itália. “Queria que Portugal nos desse uma oportunidade destas, nem que fosse só para tratar de doentes de covid. Causa uma certa dor que no nosso país, para onde viemos a pensar em maiores oportunidades, o processo de reconhecimento dos nossos diplomas seja tão lento, demorado e até difícil. Vou fazer as provas, vou lutar por trabalhar em Portugal. Mas enquanto espero, para mim, é muito melhor trabalhar no que sei fazer.”

(IMAGEM PXHERE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2021. Pode ser consultado aqui

Venezuela e Irão: amizade de circunstância contra um inimigo comum

Seis navios enviados pelo Irão chegaram recentemente à Venezuela, carregados de alimentos e petróleo. Penalizados por sanções impostas pelos Estados Unidos, os dois países investem numa relação bilateral que significa uma preciosa fonte de receitas para Teerão e, para Caracas, a garantia de que os depósitos de combustível não se esvaziem por completo

Da pandemia de covid-19 aos protestos contra o racismo, passando por sondagens que traduzem dificuldades na corrida para a Casa Branca, Donald Trump tem problemas suficientes que lhe tomem os dias. Não muito longe dos Estados Unidos, contudo, dois dos países com quem o Presidente norte-americano assumiu uma rutura estão mais ativos e cooperantes do que nunca — o Irão e a Venezuela.

“Desde 1999, a ‘Venezuela Bolivariana’ ocupa um lugar especial na mundividência político-ideológica e nas ambições da República Islâmica do Irão”, afirma ao Expresso o investigador Ali Fathollah-Nejad, do Brookings Doha Center e professor na Universidade de Tübingen (Alemanha).

“Os dois ‘Estados revolucionários’ formam um eixo de resistência Sul-Sul, terceiromundista e ‘anti-imperialista’, contra a América. Ambos sofrem tremendamente com sanções onerosas impostas pelos EUA e têm uma má gestão económica e corrupção no centro do baixo e mau desempenho económico e financeiro.”

Numa tentativa de contrariar dificuldades, têm chegado à Venezuela cargueiros enviados pelo Irão, transportando bens essenciais. O último atracou em Caracas na semana passada, com alimentos destinados a abastecer o primeiro supermercado iraniano que vai abrir portas no país.

Antes, cinco outros navios tinham transportado 1,5 milhões de barris de petróleo iraniano e equipamentos destinados a revitalizar as refinarias locais, que têm sido afetadas pelo efeito das sanções norte-americanas.

“O Irão é dos poucos aliados que restam à Venezuela. Tanto a China como a Rússia reduziram a sua exposição ao país, já que, ao abrigo das sanções dos EUA, negociar com o regime de Nicolás Maduro pode sair muito caro”, diz ao Expresso o investigador Nicolás Saldías, do Wilson Center, em Washington D.C. (EUA), referindo-se à ameaça de retaliação de Washington sobre países que insistam em desenvolver relações económicas com a República Islâmica.

“O Irão, por seu lado, já é fortemente sancionado pelos EUA, pelo que tem muito pouco a perder e, na verdade, até tem algo a ganhar com a exportação de bens extremamente necessários para a Venezuela”, acrescenta Saldías.

A rutura da Administração Trump com o Irão data de 8 de maio de 2018, quando os EUA abandonaram o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano e reintroduziram as sanções que haviam sido suspensas por Barack Obama. Com a Venezuela, uma data-chave foi 23 de janeiro de 2019, quando Washington retirou legitimidade a Maduro e reconheceu Juan Guaidó como Presidente Interino do país.

“Na medida em que ambos os países se tornaram párias na cena internacional, têm pouca escolha a não ser cooperar”, conclui Saldías.

“Os envios de combustível do Irão para a Venezuela, com o objetivo de aliviar uma escassez aguda de gasolina no país, foram assumidos por ambos os lados dentro da narrativa de ‘frente de resistência contra o imperialismo dos EUA’”, diz Ali Fathollah-Nejad.

“Para os conservadores iranianos, a relutância de Washington em interferir militarmente foi vista como sinal de que ‘estamos a testemunhar o declínio precoce e rápido dos nossos arqui-inimigos, particularmente os EUA’, disse o chefe dos Guardas da Revolução”, corpo de elite das forças armadas iranianas.

Temendo uma reação militar dos norte-americanos, as embarcações iranianas foram escoltadas por aviões de combate e helicópteros venezuelanos na sua aproximação à costa.

Aviões carregados de barras de ouro

Em direção contrária aos navios que chegaram do Irão, partiram de Caracas aviões da companhia aérea iraniana Mahan Air carregados com toneladas de lingotes de ouro. É a forma de pagamento dos venezuelanos. “Estima-se que a Venezuela tenha pago ao Irão mais de 700 milhões de dólares [624 milhões de euros] em ouro por remessas de gasolina e outros bens básicos”, esclarece Saldías.

“Esta é a mesma companhia aérea terrorista que o Irão usa para transportar armas e combatentes por todo o Médio Oriente”, insurgiu-se o secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo. “Estes voos têm de parar e os países deviam fazer a sua parte e negar autorizações de voo, da mesma forma que muitos já recusaram autorizações de aterragem a esta companhia aérea sancionada.”

Para o Irão, esta relação significa uma preciosa fonte de receitas. Para a Venezuela, é uma forma de garantir que os depósitos de combustível não se esvaziem por completo — uma grande ironia, tratando-se a Venezuela de um dos países onde o crude é mais abundante.

“A Venezuela e o Irão têm, respetivamente, as maiores e as quartas maiores reservas mundiais de petróleo comprovadas, sendo as reservas venezuelanas o dobro das iranianas”, recorda Ali Fathollah-Nejad. “No entanto, as sanções dos EUA, a escassez interna e a natureza mutável do mercado mundial de petróleo são obstáculos importantes para Caracas e Teerão desenvolverem plenamente a sua riqueza em hidrocarbonetos.”

Nicolás Saldías recorda que, na Venezuela, a indústria petrolífera está nas mãos do Estado, através da Petróleos de Venezuela (PDVSA), “que tem sido usada pelo regime para apoiar os seus programas sociais e para corrupção. Na medida em que muitos milhões de dólares foram desviados da empresa, menos dinheiro foi investido para manter os níveis de produção. À medida que o regime de Maduro se tornou instável, o papel das forças armadas cresceu. Os líderes militares que chefiam a empresa têm falta de experiência no sector, o que piorou o desempenho da empresa”.

Crise com raízes em 2002

Saldías identifica o início da instabilidade na indústria petrolífera venezuelana na grande greve de 2002, motivada por razões políticas (estava Hugo Chávez no Palácio de Miraflores), que paralisou o sector e obrigou a Venezuela a importar petróleo do estrangeiro.

Seguiram-se despedimentos em massa e substituíram-se engenheiros qualificados e quadros que se opunham a Chávez por pessoal menos qualificado. A produção caiu e, depois, tudo se complicou com a queda do preço do crude nos mercados internacionais e as sanções dos EUA.

Para o Irão, estes carregamentos de petróleo trazem benefícios simbólicos e económicos. “Simbolicamente, contribuem para manter a narrativa que o Irão tem usado de forma consistente na região (em especial relativamente ao regime de Assad na Síria), segundo a qual nunca abandona aliados leais, sobretudo quando estão em apuros. E também, atravessando estas remessas metade do globo, dão crédito à sua autoproclamada ambição de se afirmar como verdadeiro ‘ator global’”, explica Ali Fathollah-Nejad.

“Em termos económicos, as remessas de combustível coincidem com uma alta produção interna que não está a ser absorvida em virtude da falta de compradores estrangeiros (também como resultado da pandemia) e da diminuição do consumo doméstico (consequência da triplicação dos preços dos combustíveis em novembro).”

Esta aliança estratégica contra o “imperialismo americano” não é de agora. Membros fundadores da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em 1960, foi com Hugo Chávez em Caracas (1999-2013) e Mahmud Ahmadinejad em Teerão (2005-2013) que se desenvolveram os laços bilaterais mais fortes.

Os dois presidentes visitaram-se muitas vezes e firmaram acordos nos sectores energético, agrícola, industrial e financeiro. Há outro domínio de cooperação entre o chavismo e os ayatollahs que causa inquietação… “Este relacionamento estreito fez soar alarmes nos EUA. Há quem acredite que o Hezbollah [grupo paramilitar libanês apoiado pelo Irão] esteja ativo na Venezuela.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui