O islamita Mohamed Morsi toma hoje posse. Mubarak tem sucessor

Mohamed Morsi toma hoje posse como Presidente do Egito — o primeiro eleito pela Irmandade Muçulmana e o primeiro que não saiu das fileiras das Forças Armadas. A cerimónia decorrerá no Cairo, mas o local concreto tem sido objeto de discórdia entre os principais atores da revolução egípcia.
Os militares querem que Morsi faça o seu juramento perante o Supremo Tribunal Constitucional. A acontecer, o novo Presidente reconheceria, implicitamente, o decreto emitido pelos militares em 17 de junho que o priva dos principais poderes em benefício do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF).
Morsi, pelo seu lado, quer tomar posse no Parlamento, dissolvido dias antes da segunda volta das presidenciais, pelo Supremo Tribunal Constitucional, que o considerou ilegalmente eleito. Recorde-se que 75% dos assentos estavam ocupados por deputados islamitas afetos à Irmandade Muçulmana e ao Partido Nour (salafita).
Na quinta-feira, a União da Juventude Revolucionária emitiu um comunicado apelando a que a cerimónia decorra na praça Tahrir, na presença dos deputados eleitos — mas impedidos de exercer funções — e com transmissão em ecrãs de televisão para as praças de todo o Egito.
Governo a todo o gás
Segundo a imprensa egípcia, hoje ainda deverá ser conhecido o nome do futuro primeiro-ministro. O novo Governo poderá, de resto, tomar posse amanhã. Morsi prometeu escolher uma personalidade independente.
Mohamed ElBaradei — o Prémio Nobel da Paz que foi um dos principais notáveis na contestação a Hosni Mubarak — foi citado na imprensa como um dos nomes que terão participado em negociações com vista à formação do novo Governo, mas não há informações consensuais de que Morsi tenha convidado o líder do Partido da Constituição (criado em finais de abril) para chefiar o Executivo.
SCAF conserva a Defesa
Contrariamente ao cargo de primeiro-ministro, o nome do próximo ministro da Defesa já é conhecido. Trata-se de Mohamed Hussein Tantawi, o líder da Junta militar. “Esta escolha visa evitar quaisquer mudanças nas Forças Armadas neste período crítico que antecede a elaboração da Constituição”, esclareceu, na quinta-feira, Mohamed al-Assar, um dos 19 generais que compõem o SCAF.
Na terça-feira, Mohamed Morsi fez o seu primeiro discurso à nação, onde enumerou cinco prioridades para os primeiros 100 dias de poder: o tráfego, a segurança, a recolha do lixo, a escassez de pão e de combustíveis. Temas simpáticos ao cidadão comum, mas que não iludem a questão principal: sem poderes e com o SCAF — que controla a economia egípcia — dentro do futuro Governo, que margem de manobra terá Morsi para corresponder às expectativas de quem fez a revolução?
COMO NASCEU E CRESCEU A IRMANDADE
É a organização islamita mais antiga e a que tem mais seguidores. Opera em dezenas de países e acaba de subir ao poder no Egito
Hesham Aly vive em Gizé, nos arredores do Cairo, tem 29 anos e uma fé inabalável na Irmandade Muçulmana (IM). “São as melhores pessoas para ajudar o Egito, e outros países árabes, a regressar às civilizações do passado e a acabar com este colete de forças em que vivemos que nos faz sofrer há décadas. Eles praticam a religião muito bem. Nunca irão enganar ou roubar. São honestos. Facilmente, colocaria tudo o que tenho nas mãos deles”, confessa ao Expresso.
Hesham estudou engenharia mecânica, mas alimenta o sonho de ganhar a vida a realizar filmes. Com um grupo de amigos, criou a agência Fekra (Ideia) e produzem documentários — que divulgam no YouTube e nas redes sociais — inspirados na primavera árabe. Cada vídeo é uma espécie de alerta acerca do que tem de mudar, designadamente no novo Egito. “A IM tem gente em todas as áreas profissionais. Em 84 anos, acumulou muito conhecimento e experiência. Será capaz de governar bem o Egito”, conclui o jovem.
Prédicas à mesa do café
Fundada em 1928, a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos radica na experiência de vida de Hasan al-Banna, um professor primário nascido em 1906 e destacado em Ismailia, cidade que acolhia a administração da Companhia do Canal do Suez (franco-britânica). O Egito era um protetorado britânico desde 1914.
Oriundo de uma família de posses do Cairo, e filho de um imam, Al-Banna — avô do pensador contemporâneo Tariq Ramadan — incomoda-se com as influências do secularismo e a gradual ocidentalização da sociedade local. Uma constatação agravada pelos acontecimentos na Turquia — herdeira do Império Otomano —, onde, em 1922, Kemal Ataturk refundara o Estado, separando política e religião. A abolição do Califado, na perspetiva de Al-Banna.
Habituado a discursar e a ensinar em mesquitas, Al-Banna concebe uma forma pouco convencional de levar a palavra de Alá ao povo. Empenha-se numa campanha de prédicas em coffe-shops, locais de perdição mas frequentados pelos jovens.
Aos poucos, aquilo que começou como um movimento de renovação da fé na sociedade egípcia transformou-se numa força política que, em finais da década de 1940, rivalizava em influência com os partidos estabelecidos. Al-Banna introduzira aspetos políticos no seu discurso e começara a dar espaço aos jovens para criarem causas islâmicas e anti-imperialistas.
Aos olhos do egípcio comum, mais do que uma corrente religiosa, a IM era uma organização com ampla base social que ensinava analfabetos, criava hospitais e lançava pequenos negócios para os mais pobres.
Para a IM, a defesa do Islão fazia-se também fora de portas. Perante a iminência da criação de um Estado judeu na Palestina, a IM envia batalhões de voluntários em nome da luta (jihad) em nome de territórios muçulmanos ameaçados. Em 1948, Israel é criado e a IM acusa a humilhação. Organiza manifestações de rua que responsabilizam o Governo egípcio pela derrota.
No final desse ano, na sequência de uma vaga de ataques à bomba e de tentativas de assassínio, cuja autoria o Governo egípcio atribui à IM, o primeiro-ministro, Fahmi al-Nuqrashi, aprova a dissolução da organização e dá ordem de prisão a muitos dirigentes. Hasan al-Banna é poupado, mas os seus esforços de reconciliação entre o Governo e as franjas extremistas dentro da IM não surtem efeito.
Repressão e extremismo
A 28 de dezembro de 1948, o primeiro-ministro é assassinado a tiro por um estudante de veterinária, membro da IM. Al-Banna é novamente deixado em liberdade, mas não sobrevive muito tempo à espiral de retaliações e, a 12 de fevereiro de 1949, é abatido a tiro numa rua do Cairo.
Em 1952, o coronel Gamal Abdel Nasser lidera um golpe que depõe a monarquia. A IM apoia a revolução, com limites: não concorda com o carácter secular da nova Constituição. A desconfiança continua e, em 1954, a organização é acusada de tentar assassinar o Presidente Nasser.
A Irmandade é banida pela segunda vez e milhares de membros são encarcerados. Entre eles, Sayyid Qutb, o outro grande ideólogo da IM, que morreria enforcado em 1966. Nascido em 1906, como Al-Banna, e igualmente professor, Qutb ganhara uma bolsa atribuída pelo Governo, em 1948 e fizera um mestrado em Educação nos Estados Unidos, onde se chocara com a competição entre igrejas.
Inspiração da Al-Qaeda
Na prisão, Sayyid Qutb escreve “Milestones” (1964). Nessa obra, discorre sobre as falências do materialismo ocidental e do nacionalismo árabe secular autoritário e apela à promoção de uma sociedade islâmica genuína onde o Islão surge como uma teologia da libertação.
A repressão do regime egípcio e os relatos de tortura feitos por muitos detidos tornam a IM permeável a visões extremistas. Entre os consumidores das ideias de Qutb está Ayman al-Zawahiri, o médico egípcio, que viria a ser o braço-direito de Osama bin Laden à frente da Al-Qaeda. Era membro da IM desde 1965.
Com muitos militantes presos, a IM renuncia oficialmente à violência nos anos 1980 e investe na política. Nessa altura, já a organização tinha ramificado pelo mundo árabe: Jordânia, Bahrain, Tunísia, Argélia, Iraque, Síria, Sudão, Somália, Iémen. Na Palestina, a Carta do Hamas aprovada em 1988 identifica a organização como “Irmandade Muçulmana da Palestina”.
A consagração política chegaria em 2005 quando, sob o lema “o Islão é a solução”, 88 simpatizantes da ilegalizada IM são eleitos deputados, como independentes. Oficiosamente, a IM torna-se assim o maior bloco de oposição a Hosni Mubarak. Este ordena uma nova vaga de detenções e impede a IM de ir a votos nas legislativas seguintes. Até que a praça Tahrir farta-se do clientelismo, corrupção e impunidade que grassavam no regime de Mubarak e substituem-no por um dirigente da Irmandade — Mohamed Morsi — que agora enfrenta a maior prova de fogo da sua história.
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de junho de 2012





