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O faraó que despiu a farda para mandar mais

Apesar de já se saber quem vai ganhar as presidenciais no Egito, vale a pena ver este vídeo. Fique a perceber como Abdel Fattah el-Sisi se tornou líder sem rival num país milenar que é um peso-pesado do Médio Oriente. 2:59 PARA EXPLICAR O MUNDO

Há um motivo de peso para estarmos atentos ao que se passa no Egito. Todos os anos milhares de portugueses fazem férias no país dos Faraós, e muitos outros sonham, um dia, ver de perto as Pirâmides de Gizé.

Hoje, muitas fotografias tiradas por todo o Egito correm o risco de captar o rosto de um só homem. Abdel Fattah al-Sisi é o Presidente do Egito e o vencedor anunciado das eleições que se avizinham.

Nasceu no Cairo há 63 anos, tem uma carreira militar de quase 40 e chefiava os serviços secretos militares quando, em 2011, os ventos da Primavera Árabe sopraram no Cairo, enchendo a Praça Tahrir de manifestações antirregime.

Hosni Mubarak, que governava há 30 anos, caiu ao fim de 18 dias de protestos.

A seguir à revolução, Sisi deu-se a conhecer aos egípcios na sombra da Irmandade Muçulmana, a força política então dominante. Foi nomeado ministro da Defesa e chefe de Estado-Maior das Forças Armadas por Mohamed Mursi, o Presidente islamita democraticamente eleito em 2012.

Face às derivas autoritárias de Mursi, Sisi liderou um golpe militar e substituiu-o no cargo. Depois despiu a farda de general e sujeitou-se à vontade popular, vencendo as presidenciais de forma esmagadora.

Entre 26 e 28 de março, 60 milhões de egípcios estão convocados para escolher o futuro Presidente. No boletim de voto, além de Sisi, haverá apenas mais um nome: Moussa Mostafa Moussa. Arquiteto de formação, formalizou a sua candidatura sete minutos antes do fim do prazo.

A sua presença dá um ar democrático a estas eleições, mas transforma-as numa farsa: é que o partido de Moussa tinha declarado apoio a Sisi e até ajudado na recolha de assinaturas.

A ausência de adversários dignos desse nome revela como, sete anos depois, as liberdades reclamadas pela Primavera Árabe são uma ilusão. Em janeiro e favereiro, vários potenciais candidatos foram saindo de cena. Um ex-chefe de Estado do Exército, um coronel do Exército, um advogado de Direitos Humanos, um ex-deputado.

Mas mesmo com um vencedor anunciado à partida, o Egito não perde interesse, dada a sua dimensão, localização e legado histórico.

É o mais populoso dos países árabes.

É o guardião do Canal do Suez, que encurta em mais de 10 dias a rota pelo Cabo da Boa Esperança.

É herdeiro de uma civilização milenar.

E acolhe a Universidade de Al-Azhar, grande centro do pensamento sunita, que lhe confere autoridade no mundo muçulmano.

E é um peso pesado da geopolítica do Médio Oriente.

Além da Jordânia, é o único país árabe que assinou um tratado de paz com Israel, com quem, de resto, coordena o bloqueio à Faixa de Gaza.

Foi um dos promotores do embargo ao Qatar.

Integra a coligação que bombardeia o Iémen.

E combate um dos maiores vespeiros mundiais do terrorismo, na Península do Sinai. A 29 de novembro de 2017, Sisi ordenou aos militares o uso de toda a força bruta para derrotar os terroristas e repor a segurança no Sinai dentro de três meses.

Bem a tempo das eleições…

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Vídeo publicado no Expresso Online, a 29 de março de 2018. Pode ser visto aqui

Canal do Suez cresce para não mirrar

É o canal artificial mais antigo do mundo e inaugura na quinta-feira um novo troço. Aos 146 anos de vida, o Canal do Suez aposta no crescimento, perante a crescente concorrência do Panamá e… da China

É uma obra faraónica e, ao que parece, um grande motivo de orgulho no país dos Faraós. Em contagem decrescente para a inauguração de um novo braço do Canal do Suez — que acontecerá esta quinta-feira —, nove nadadores estenderam sobre as águas do canal artificial mais antigo do mundo uma bandeira do Egito com cinco quilómetros de comprimento. Numa outra iniciativa, o mergulhador Walaa Hafez, conhecido como “a baleia egípcia”, vai tentar bater um recorde mundial, percorrendo 125 km debaixo de água.

É dia de festa gorda no Egito e, para fazer jus à importância do evento, funcionários públicos, bancários e trabalhadores da Bolsa receberam “ordem” para gozar um dia feriado.

Segundo “The Cairo Post”, está confirmada a presença de delegações de 121 países e pelo menos 26 chefes de Estado, entre os quais o francês François Hollande. Portugal será representado pelo secretário de Estado da Cooperação, Luís Campos Ferreira.

A cerimónia será uma oportunidade para celebrar a maior expansão deste Canal desde a sua abertura, em 1869. Mas também um ato simbólico de afirmação da liderança do Presidente Abdel-Fattah El-Sisi, o ex-general que afastou a Irmandade Muçulmana do poder em 2013, e do próprio Egito na disputa pela hegemonia no “campeonato” dos grandes canais marítimos.

“Do ponto de vista da indústria naval, esta iniciativa de expandir o Canal do Suez é um pouco surpreendente”, diz Ralph Leszczynski, da empresa Banchero Costa & Co., sedeada em Singapura. “Tanto quanto sei, não havia nenhuma necessidade premente ou solicitações nesse sentido.”

Alguns críticos deste projeto recordam que o Suez — que é uma fonte de receitas fundamental para o Estado egípcio — tem ainda muito que recuperar em virtude dos grandes prejuízos sofridos pela crise financeira mundial. Dados compilados pela agência Bloomberg revelam que o número de embarcações que atravessa o Canal permanece 20% abaixo do seu nível de 2008 e apenas 2% mais alto do que há uma década.

O jornal “The National”, dos Emirados Árabes Unidos, avança com argumentos geopolíticos para lançar algumas dúvidas sobre a oportunidade do projeto egípcio. Esta obra, escreve na edição desta quarta-feira, “devia garantir que o Suez permanecesse competitivo em relação ao seu principal rival, o Canal do Panamá, no que diz respeito ao transporte de mercadorias entre a costa oriental da Ásia e a costa oriental da América do Norte”.

Porém, continua o jornal, “o número de navios que se prevê que utilizem os dois canais, ainda que em crescimento, é sempre limitado e algumas das vantagens do Suez quase de certeza que irão sofrer erosão devido a um canal totalmente novo que a China está a planear começar a construir no final do ano na Nicarágua, não muito longe do Panamá”, e que deverá começar a funcionar em 2020.

O novo troço, que demorou um ano a ser construído, consiste numa extensão de 35 quilómetros, paralela ao curso do Canal (que mede, no total, 193 quilómetros), e no alargamento e aprofundamento de outros 37 quilómetros.

Foi pago com dinheiros egípcios — 8,5 mil milhões de dólares (7,7 mil milhões de euros) — e, assim o espera a Autoridade do Canal do Suez, poderá contribuir para quase triplicar as receitas provenientes da sua utilização — dos atuais 5,3 mil milhões de dólares (4,8 mil milhões de euros) para cerca de 13,2 mil milhões de dólares (12 mil milhões de euros) em 2023.

Esta obra possibilitará o trânsito de navios nos dois sentidos numa extensão de 72 quilómetros (com uma profundidade de 24 metros) e encortará o período de espera dos barcos de 18 para 11 horas. No Egito, acredita-se que, dentro de uma década, o número de navios a atravessar o Canal poderá duplicar.

Aberto em 1869, após uma década de obras que custou milhares de vidas de trabalhadores, o Canal do Suez é uma das artérias de navegação mais importantes para o comércio mundial, e em particular para o tráfico petrolífero. Estima-se que, em 2013, 4,6% do petróleo e produtos derivados foram escoados através do Suez. E que por ali flua cerca de 7,5% do comércio marítimo mundial.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 5 de agosto de 2015. Pode ser consultado aqui

Vitória grande, prisões cheias

Abdel Fattah el-Sisi venceu as presidenciais de forma esmagadora. O povo quer estabilidade e prosperidade económica

ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF

Uma vitória eleitoral superior a 90% leva qualquer democrata a franzir o sobrolho. O resultado oficioso das presidenciais no Egito revelou que o ex-chefe das Forças Armadas Abdel Fattah el-Sisi terá um resultado desse calibre — o oficial será conhecido até 5 de junho. Em declarações ao Expresso, o eurodeputado Mário David, chefe da missão de observadores da União Europeia, afastou desconfianças: “Formalmente, o ato eleitoral correu extremamente bem. A votação foi transparente. Os observadores visitaram mais de 1600 assembleias de voto e não presenciaram qualquer fraude. Mas sabemos em que circunstâncias as eleições ocorreram, com muitos dirigentes da Irmandade Muçulmana presos”.

O português fala de um ambiente eleitoral sereno. Os 150 observadores foram a 26 das 27 províncias (faltou o norte do Sinai, por razões de segurança) e “não testemunharam um único incidente”. E refere que a sociedade está dividida, intolerante e em grande tensão. “O ambiente era de apertado controlo sobre o direito de reunião. As liberdades de imprensa e de expressão estavam, muitas vezes, autocensuradas.”

Ao calor para votar

Planeada para durar dois dias, a votação foi prolongada 24 horas (terminou quarta-feira) para dar tempo aos eleitores para se dirigirem às assembleias onde estavam registados e também por causa do calor. Terça-feira, no Cairo, o termómetro subiu aos 47 graus. Alguma imprensa justificou a decisão com a fraca afluência às urnas — mais baixa do que nas eleições de 2012, ganhas por Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, afastado por um golpe liderado por El-Sisi.

A taxa de participação fixou-se nos 47,3% (mais 0,9% do que em 2012). Samir Hany, 24 anos, que vive no Cairo, votou em El-Sisi com convicção. “Teve um desempenho histórico num momento crítico”, diz ao Expresso. “Tomou a decisão de depor Morsi apoiado por milhares de egípcios que saíram à rua a 30 de julho de 2012. O seu programa vai ajudar os egípcios a prosperar e vai fazer reformas no Estado porque pertenceu a uma instituição poderosa (militar). Gosto da sua honestidade. E por ter carisma tem grande popularidade em todo o mundo árabe.”

Mário David encontrou-se com El-Sisi e com Hamdeen Sabahi, o outro candidato. “Sou presidente da delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Egito e ambos demonstraram muito interesse em relação à possibilidade de auxílio financeiro.” A importância geoestratégica do Egito é enorme, mas o país não tem riquezas naturais para suprir as necessidades de 94 milhões de habitantes (e de uma explosão demográfica de 2,4 milhões de pessoas ao ano). E as pirâmides estão sem turistas.

Artigo publicado no Expresso, a 31 de maio de 2014

Tribunal ilegaliza Irmandade Muçulmana

Partido islamita que apoia o Presidente egípcio deposto Mohamed Mursi acaba de ser banido por decisão judicial

As atividades da Irmandade Muçulmana foram hoje totalmente banidas no país por um tribunal egípcio, que assim intensifica a campanha para debilitar o partido islamita que apoia o Presidente Mohamed Morsi.

“O tribunal ilegaliza todas as atividades da Irmandade Muçulmana e das suas organizações não-governamentais”, impedimento também aplicado a “todas as ações de outras organizações associadas”, disse hoje o juiz-presidente do tribunal Mohammed al-Sayed, citado pela Reuters.

O tribunal administrativo ordenou ainda ao Governo interino do Egito que confisque os fundos da Irmandade e que estabeleça uma comissão para administrar os seus ativos que foram congelados até que um eventual recurso seja apreciado. Fonte da Irmandade disse ao jornal egípcio “Ahram Online” que o grupo vai recorrer da decisão.

A Irmandade Muçulmana foi fundada no Egito em 1928 e funcionou, na maior parte da sua história, de forma ilegal. Com um eleitorado fiel na ordem dos 20%, o grupo ganhou relevância política na era pós-Mubarak, tendo o seu braço político — o Partido Liberdade e Justiça — vencido as eleições legislativas e presidenciais. Em março passado, a Irmandade foi legalizada enquanto Organização Não-Governamental.

Após o golpe militar de 3 de julho de 2013, que afastou o islamita Mohamed Morsi do poder, as autoridades egípcias desencadearam uma campanha de repressão contra o grupo. As manifestações permanentes de simpatizantes da Irmandade, em duas praças do Cairo, que exigiam a restituição de Morsi, foram violentamente reprimidas (centenas de mortos) e os principais dirigentes da organização detidos. Entre eles, estão o guia supremo Mohamed Badie, o seu vice Khairat El-Shater, o secretário-geral Ezzat Ibrahim e ainda Mohamed El-Beltagy, outro dos principais líderes. Todos são acusados de incitamento à violência.

Desde então, a ilegalização da Irmandade passou a ser apenas uma questão de tempo, estando apenas dependente de enquadramento legal. A 2 de setembro, a Autoridade de Comissários do Estado — um órgão que aconselha o Governo, de forma não vinculativa, em questões legais — recomendou a dissolução da Irmandade com base em acusações que a associavam a milícias armadas.

Artigo escrito com Paulo Luís de Castro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2013. Pode ser consultado aqui

Cenário de guerra nas ruas do Cairo

Um jornalista espanhol conta o que viu, sexta-feira à tarde, nas ruas da capital egípcia, onde nenhum sítio parece ser seguro

O “dia da ira”, convocado em todo o Egito por apoiantes da Irmandade Muçulmana, saldou-se em pelo menos 27 mortos, segundo o Ministério da Saúde local. A Al-Jazeera noticiou 32 mortos, só na Praça Ramses (Cairo), e sete na cidade de Alexandria. Outros órgãos de informação falam em mais de 50 mortos.

Julio de la Guardia, jornalista espanhol, contou ao Expresso o que testemunhou, durante a tarde, nas ruas do Cairo:

“Acompanhei uma manifestação que partiu de Gizé em direção à Praça Ramses. Ao chegar junto ao Hotel Kempinski, a polícia tinha montado uma barreira e começaram os confrontos. Os manifestantes à pedrada. A polícia, no início, com gases. Depois começou a disparar, apesar dos manifestantes não terem armas nem terem disparado qualquer tiro. Mataram uma vintena de manifestantes e levaram bastantes feridos nas motas. Unidades especiais vestidas de preto, alguns com camuflados e outros com capacetes. Também francoatiradores. Eu estava resguardado na entrada do Four Seasons, pensado que era um lugar seguro. Errado! Começaram a disparar rajadas. Todo o vidro metralhado. Dois mortos ao meu lado.”

Os confrontos continuaram pela noite dentro, em desafio ao recolher obrigatório imposto pelas autoridades militares, entre as 19 horas e as seis da manhã (mais uma hora do que em Portugal continental).

Esta jornada de protesto foi convocada pela chamada Aliança Anti-Golpe, que se opõe ao golpe militar de 3 de julho que afastou do poder o Presidente islamita Mohamed Morsi, democraticamente eleito.

Na quarta-feira, a dispersão, pela força, de milhares de apoiantes de Morsi que ocupavam duas praças do Cairo fez, segundo o Ministério da Saúde, 638 mortos e mais de 4000 feridos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2013. Pode ser consultado aqui