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A incómoda entrada em cena de Israel

De olho no Hezbollah, Israel fez dois ataques em território sírio. A sua repetição pode incendiar o Médio Oriente

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Ainda não há data, mas o apoio dos Estados Unidos e da Rússia já está garantido. “Assim que for viável, possivelmente no final deste mês”, realizar-se-á uma conferência internacional sobre a guerra civil na Síria — anunciaram, na terça-feira, John Kerry e Sergei Lavrov, respetivamente, chefes da diplomacia norte-americana e russa, após um encontro em Moscovo. “É a primeira notícia a dar esperança a um país infeliz faz muito tempo”, reagiu o enviado na ONU e da Liga Árabe para a Síria, Lakhdar Brahimi.

No conflito sírio, Washington e Moscovo estão em lados opostos da barricada. Para os EUA, Bashar al-Assad não é opção para a fase de transição: “É impossível para mim, como pessoa, compreender como é que a Síria poderia ser governada no futuro pelo homem que fez as coisas que todos sabemos”, disse Kerry. Já a Rússia — aliada do Presidente sírio desde a primeira hora — não está “interessada no destino de pessoas em concreto”, disse Lavrov, sem mencionar o nome de Assad.

“Há razões para ceticismo quanto aos planos da Rússia e dos EUA em relação a uma conferência internacional sobre a Síria — os diplomatas, muitas vezes, propõem reuniões quando não têm soluções”, escreveu, quarta-feira, em editorial, o influente “The New York Times”. “Mas, numa altura em que a guerra civil está a piorar em todos os aspetos, esta iniciativa é um sinal de esperança.”

A ‘linha vermelha’ de Israel

A realizar-se, será a primeira vez que regime e oposição se sentam à mesa do diálogo, após dois anos de guerra que já fez mais de 70 mil mortos, 4,25 milhões de deslocados internos e mais de um milhão de refugiados — “o pior conflito desde o fim da Guerra Fria”, disse António Guterres, alto comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR).

Entretanto, a guerra civil síria ameaça extravasar como conflito regional. Domingo passado, a força aérea israelita bombardeou o Centro de Investigação Jamraya, nos arredores de Damasco. Dois dias antes, já tinha atacado o que se pensa ser um carregamento de armas para o Hezbollah, que incluía mísseis Fateh-110, de fabrico iraniano, que colocariam Telavive ao alcance dos rockets do movimento xiita libanês.

“Se Israel atacar, será das coisas mais perigosas para o Médio Oriente”, reagiu segunda-feira o Presidente da Turquia, Abdullah Gül, a bordo do avião que o trazia para Portugal, que visitou durante três dias. “Vai arruinar tudo. O regime (sírio) vai beneficiar disso”, disse, citado pelo jornal turco “Today’s Zaman”.

À semelhança da Administração Obama — que tem no uso de armas químicas o alerta para intervir no conflito —, também Israel tem a sua “linha vermelha”: o Hezbollah, fortemente apoiado pelo Irão. “Com o Hezbollah a empenhar talvez metade das suas forças na Síria, ajudando o regime do ditador Assad a lutar pela sobrevivência, a organização xiita libanesa vai querer ‘recompensas’ para as suas ações”, lê-se numa análise publicada pelo diário israelita “The Jerusalem Post”. “O Hezbollah e o seu patrono Irão poderão ter pedido a Assad que mande para o Líbano armas mais sofisticadas (leia-se mísseis ou gases).”

ONU na mira rebelde

Do ponto de vista tático, os ataques israelitas serviram os interesses rebeldes. Mas entre a oposição, a entrada em cena de Israel é incómoda. “O regime (sírio) usou as suas forças para reprimir as exigências de mudança do povo, enfraquecendo a defesa síria e assim permitindo que forças externas ocupantes (da Palestina) atinjam posições sírias”, lê-se num comunicado da Coligação Nacional da Revolução Síria e das Forças da Oposição, publicado no seu site.

Quarta-feira, forças leais a Assad reconquistaram uma cidade estratégica no sul da Síria — Khirbet Ghazaleh, situada junto à autoestrada que liga Damasco e Amã (Jordânia). Entre os rebeldes, parece reinar a desorientação. Na terça-feira, a Brigada dos Mártires Yarmouk, um grupo rebelde formado há menos de um ano, raptou quatro capacetes azuis da UNDOF — a missão da ONU que, desde 1974, superintende o cessar-fogo entre Israel e a Síria, nos Montes Golã (ocupados por Israel em 1967). Os rebeldes afirmam que os quatro filipinos foram detidos “para sua própria proteção”.

IMPACTO DA GUERRA

40%
da população da Jordânia será composta por refugiados sírios em 2014, se o fluxo continuar

4,25
milhões de sírios (um quinto da população) são deslocados internos, a maioria em Alepo e nas áreas rurais de Damasco

ATAQUES NA ERA BASHAR

JULHO 2001
Com Bashar al-Assad há um ano no poder, aviões israelitas atacam um radar militar sírio instalado no Líbano (país ocupado pela Síria), em resposta a um ataque do Hezbollah a bases israelitas nas Quintas Shebaa (ocupadas por Israel e reivindicadas pelo Líbano).

OUTUBRO 2003
Israel bombardeia o campo de Ain es Saheb (25 km a noroeste de Damasco), usado por militantes palestinianos, respondendo a um ataque suicida em Haifa (Israel), horas antes, feito pela Jihad Islâmica.

JUNHO 2006
F-16 israelitas sobrevoam a Síria e o Líbano, a baixa altitude, num voo de intimidação a Damasco. Os caças passam sobre a residência de verão de Bashar al-Assad, em Latakia.

SETEMBRO 2007
Israel desencadeia a Operação Pomar: raides aéreos noturnos contra um reator nuclear sírio, perto da cidade de Deir ez-Zour.

NOVEMBRO 2011
Com a revolta contra Bashar al-Assad em curso, Israel dispara contra território sírio, em resposta a tiros de morteiro contra os Montes Golã (ocupados por Israel em 1967).

JANEIRO 2013
Israel ataca uma coluna que transportava armamento antiaéreo sofisticado, com origem no centro de investigação científica de Jamraya (noroeste de Damasco) e que teria como destino o Hezbollah, no Líbano.

MARÇO 2013
Israel destrói uma posição militar síria, como retaliação por disparos contra soldados israelitas nos Montes Golã.

MAIO 2013
Caças israelitas bombardeiam Jamraya, alegadamente atingindo um carregamento de mísseis de fabrico iraniano destinados ao Hezbollah.

Artigo publicado no Expresso, a 11 de maio de 2013

Asma Assad no país das maravilhas

O cosmopolitismo da primeira-dama síria fez dela a relações públicas perfeita de um dos países mais fechados do mundo. Mas as extravagâncias privadas e a forma como se alheou da repressão ordenada pelo marido tornam-na uma vilã

Asma Assad e o marido, Bashar RICARDO STUCKERT / WIKIMEDIA COMMONS

Naquele dia, Bashar al-Assad deve ter sido o homem mais falado em todo o mundo, pelas piores razões. À sua ordem, na véspera, forças de segurança apontaram armas à cidade de Homs — um dos principais bastiões rebeldes do “despertar sírio” — e cometeram uma das piores chacinas desde o início da revolução. Em Damasco, o Presidente não se deixou afetar e entregou-se àquilo que, verdadeiramente, era importante para si naquele momento.

Usando o pseudónimo Sam, escreveu um email à esposa, Asma. Absteve-se de quaisquer referências aos tumultos em curso, descarregou do iTunes o tema ‘God Gave Me You’ (Deus deu-te a mim), do cantor country Blake Shelton, e transcreveu a letra, num aparente ato de autocomiseração: “I’ve been a walking heartache / I’ve made a mess of me / The person that I’ve been lately / Ain’t who I wanna be” (Tenho sido uma dor de coração ambulante / Fiz de mim mesmo uma trapalhada / A pessoa que tenho sido nos últimos tempos / Não é a pessoa que quero ser), diz o primeiro verso.

Estava-se a 5 de fevereiro de 2012, o Presidente levava já quase um ano de contestação, e os Assad pareciam viver num casulo, incapazes de acordar para a realidade e admitir o que era visível para o resto do mundo — o regime tinha os dias contados.

A mensagem de Bashar consta de um conjunto de cerca de 3000 emails a que o diário britânico “The Guardian” teve acesso recentemente, após as contas pessoais dos Assad terem sido intercetadas por membros da oposição. A sensação de autismo em que parece viver a ‘primeira família’ acentuou-se com a revelação de algumas extravagâncias da primeira-dama.

Ao longo do ano passado, quando a contestação ao marido já estava nas ruas, Asma esbanjou dezenas de milhares de dólares em artigos de luxo, encomendados através do iPhone e do iPad: sapatos Christian Louboutin, joias de Paris, mobílias de Chelsea, peças de decoração do Harrods, lustres, cortinas e pinturas. Para contornar as sanções impostas a Bashar, ela socorreu-se de um nome falso — Alia Kayali — e de moradas falsas, em Londres ou no Dubai.

Enquanto o marido ordenava a repressão do mais pequeno sinal de dissidência, no aconchego do lar a primeira-dama parecia tomada por uma terapia consumista, empenhada em concretizar os últimos desejos do clã Assad, particularmente dos filhos Hafez, Zein e Karim. Entre as compras feitas, consta o filme “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, um kit para fondue e downloads com fartura do iTunes, de Chris Brown a LMFAO e Right Said Fred.

Bashar vivia o período mais difícil em quase 12 anos de poder. No exterior, cada vez mais vozes acusavam-no de crimes contra a humanidade, quase que sentenciando a sua morte política. Os Assad alhearam-se, mas, após a revelação da ostentação em que vivem, algo mudará: a União Europeia já anunciou que tenciona adicionar o nome de Asma à lista de personalidades sírias alvo de sanções.

Uma rosa britânica no deserto

Nascida em Londres, em 1975, Asma Fawaz al-Akhras é oriunda de uma família sunita (e não alauita, como o marido e a minoria que governa a Síria). Os pais — o cardiologista Fawas Akhras, natural de Homs, e a diplomata Sahar Otri, de Alepo — tinham emigrado para o Reino Unido na década de 50, muito antes de Hafez al-Assad, pai de Bashar, subir ao poder.

Em casa, falava-se árabe, e as férias eram passadas na Síria. Mas, habituados a viver numa sociedade liberal, os progenitores fizeram os possíveis para que a filha crescesse como uma inglesa. Frequentou um colégio anglicano em Acton — onde lhe chamavam Emma — e, depois, o renomado King’s College, onde cursou Ciências da Computação e Literatura Francesa. Ingressou no sector bancário, como analista de fusões e aquisições, primeiro do Deutsche Bank e depois do JP Morgan, em Paris e Nova Iorque.

Em dezembro de 2000, abandonou o Reino Unido para se casar com Bashar — era ele Presidente havia cinco meses. Conheciam-se desde a juventude e aproximaram-se durante os estudos universitários. Após licenciar-se em Medicina, em Damasco, Bashar foi para Londres fazer a especialização em Oftalmologia. Como se horrorizava com sangue, optou pelos olhos, um órgão pouco dado a hemorragias.

A história de amor escapou aos tabloides britânicos. Na Síria, por seu turno, a união entre Bashar e Asma era sentida também como uma aliança política: ele era alauita (um ramo do Islão xiita) e ela sunita, a maioria que, nos anos 80, tentara derrubar o regime do pai Hafez.

A juventude e sofisticação de Asma rapidamente elevaram-na ao patamar das mulheres mais elegantes do mundo, rivalizando com Carla Bruni, Michelle Obama ou Rania da Jordânia. Asma era a relações públicas por excelência da fechada Síria. Do “60 Minutes” ao “Oprah Show”, choviam pedidos de entrevistas. Em 2008, a “Elle” francesa elegeu-a “a primeira-dama mais bem vestida do mundo”. “Glamorosa, jovem e muito chique. É a mais refrescante e a mais magnética das primeiras-damas”, acrescentaria a revista “Vogue”, num artigo que haveria de causar grande polémica.

Publicado a 25 de fevereiro de 2011, o texto — intitulado “Uma Rosa no Deserto” — abriu as portas do moderno apartamento habitado pelos Assad, no bairro Malki, em Damasco, como não era habitual. Podia ler-se: “Asma al-Assad esvazia uma caixa de mistura de fondue para uma panela, para fazer o almoço. A vida de casa é gerida, naturalmente, por princípios democráticos. ‘Todos nós votamos naquilo que queremos e onde queremos’, diz ela. O candeeiro por cima da mesa de jantar é feito de recortes de livros de desenhos animados. ‘Eles [os filhos] derrotaram-nos por 3-2 nessa votação.’”

A democracia era válida em casa, mas não fora dela, onde um regime de partido único praticava a tolerância zero à dissidência. A “Vogue” acusa o embaraço e retira o artigo do seu sítio na Internet. As revoluções na Tunísia e no Egito já tinham derrubado ditadores e as ruas sírias ensaiavam as primeiras ações de contestação a Bashar. Asma sai em defesa do marido. “O Presidente é o Presidente da Síria, não uma fação de sírios, e a primeira-dama apoia-o nessas funções”, disse num email enviado ao “The Times”.

Há cada vez mais vozes a referirem-se a Asma como a Maria Antonieta árabe

A lealdade conjugal sobrepunha-se a qualquer hesitação moral. Em 2005, Asma fundara a organização Massar, destinada a promover a “cidadania ativa” e a participação dos jovens na política, mas quando essa intervenção cívica visou o marido a sua causa caiu pela base.

Num dos emails tornados públicos, AAA — como Asma al-Assad assina as mensagens de carácter pessoal — confidenciava a uma amiga, a 14 de dezembro de 2011: “E, no que toca a ouvir, eu sou o verdadeiro ditador, ele não tem hipótese.” Ainda que o comentário tenha sido feito em tom de brincadeira, revelava que Asma reconhecia ser essa a imagem do marido. E que ela convivia bem com isso.

Asma parece confortável neste mundo de fantasia, mas os emails tornados públicos revelam igualmente que, entre as abastadas elites do Médio Oriente, há quem tenha lucidez e procure aconselhar os Assad a refugiarem-se… num exílio dourado. Num email trocado com Asma, Mayassa al-Thani, filha do emir do Qatar, apelou-lhe que abandonasse o “estado de negação” em que parecia mergulhada. “Só rezo para que convenças o Presidente a aproveitar esta oportunidade para sair sem ter de enfrentar acusações”, escreveu a princesa do Qatar. “A região necessita de estabilidade e tu precisas de paz de espírito. Estou certa que têm muitos lugares para onde ir, incluindo Doha.”

Em tempos, a revista francesa “Paris Match” descreveu Asma como “a luz num país pleno de zonas obscuras”. O próprio Presidente francês, Nicolas Sarkozy, alertado pelos assessores para a faceta ditatorial de Bashar al-Assad, terá desabafado: “Com uma mulher tão moderna, ele não pode ser completamente mau.” A verdade é que, fruto da defesa incondicional que faz do marido — paralelamente ao aumento de mortos, sobretudo civis, resultante do impasse da crise síria —, há cada vez mais vozes a referirem-se a Asma al-Assad como a “Maria Antonieta árabe”.

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 24 de março de 2012, e republicado no “Expresso Diário”, a 15 de dezembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Portas: “A inação não só é inaceitável como irresponsável”

Discurso integral do ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas no Conselho de Segurança da ONU sobre a situação na Síria, a 31 de janeiro

Muito obrigado Senhor Presidente, e muito obrigado por ter convocado esta reunião tão importante.

Quero dar as boas vindas a este Conselho a Sua Excelência o Xeque Hamad, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar, e ao Dr. Nabil al-Arabi, Secretário-Geral da Liga Árabe.

Quero também agradecer-lhes pelos “briefings” abrangentes e louvar os seus grandes esforços tendo em vista resolver a crise na Síria.

Decidi participar neste debate do Conselho de Segurança pela simples razão de que aquilo que se passa na Síria é tão grave, a inação da comunidade internacional é tão chocante, uma solução árabe é tão urgente, e uma decisão das Nações Unidas é tão essencial, que me senti obrigado a participar e a fazer tudo ao meu alcance para transformar o impasse numa solução e a hesitação em decisão.

Excelências,

A situação na Síria é inaceitável e insustentável. Há dez meses que presenciamos a repressão mais brutal contra civis e a mais flagrante e sistemática violação dos seus direitos humanos mais fundamentais. A brutalidade das autoridades sírias causou milhares de mortos e muitos mais feridos, detidos e torturados, demonstrando o seu desprezo pelos direitos humanos e a sua recusa em proteger a sua própria população. 

De acordo com a UNICEF, cerca de quatrocentas crianças perderam a vida na Síria. Esta é, sem dúvida, uma boa medida das atrocidades cometidas. A única aspiração dos sírios, inspirados pelos seus irmãos de outros países árabes, era simplesmente exprimir o seu protesto e abrir caminho para uma sociedade democrática. Foi o que fizeram, e responderam-lhes com balas, espancamentos e detenções. Estas vítimas e as suas famílias merecem toda a nossa solidariedade.

À medida que a violência continua, a situação na Síria encaminha-se perigosamente rumo à guerra civil, com sérios riscos para a paz e a segurança da região. Apesar disso, o Conselho de Segurança não foi capaz de cumprir plenamente o seu dever para com a Síria e o povo sírio, bem como de desempenhar o seu papel enquanto principal órgão responsável pela paz e segurança internacionais.

Permitam-me ser claro: o argumento aduzido durante estes dez meses de que na Síria a escolha seria entre a inação e a guerra civil não colhe, tendo em conta aquilo que vemos, ouvimos e lemos todos os dias: o país está a cair na guerra civil. Só existe agora verdadeiramente escolha entre a escalada do conflito e uma solução política controlada e negociada.

Senhor Presidente,

Portugal apoia integralmente os esforços da Liga Árabe rumo a uma solução pacífica para a crise na Síria. Uma solução que assegure ao mesmo tempo o fim da violência e permita o exercício de um processo político sério, que estabeleça uma Síria livre e democrática. Aplaudimos já o envio da Missão Árabe de Observação e a decisão de prolongar o seu mandato. Apesar da missão, o regime continua a sua opressão violenta contra as vozes do protesto pacífico e as suas violações disseminadas, sistemáticas e grosseiras dos direitos humanos, conforme documentado pela Comissão de Inquérito do Conselho de Direitos Humanos.

As informações prestadas pela Comissão são arrepiantes e os responsáveis por estas violações brutais têm de ser responsabilizados. Estamos chocados com o assassinato, na semana passada, do chefe de uma delegação do Crescente Vermelho Árabe Sírio. Devemos reiterar, firme e inequivocamente, que tomar como alvo, deliberadamente, pessoal humanitário é um ato simplesmente bárbaro. 

Excelências,

Ao ignorar consistentemente numerosos apelos para pôr termo à repressão sangrenta, as autoridades da Síria alimentaram a escalada e a violência. Ainda que sujeita à repressão, confiamos em que o movimento de oposição sírio manterá a natureza pacífica dos seus legítimos objetivos. Tenho que reiterar a urgência do fim imediato de toda a violência.

Do mesmo modo, o início de um processo político sério que conduza a um sistema político democrático e plural no qual todos os cidadãos, independentemente das suas orientações políticas, etnias ou crenças, sejam tratados por igual e possam realizar as suas legítimas aspirações. Há alguns meses o Presidente Assad anunciou reformas. Não cumpriu, no entanto, estas promessas nem os compromissos assumidos para com a Liga Árabe. Em situações como estas, o velho princípio de que basta mudar algumas coisas para que tudo fique na mesma não se aplica. Muito pelo contrário, a lição da História é esta: onde não há reformas, haverá revoluções.

Portugal defende a soberania, independência e integridade territorial da Síria. Quanto mais se arrastar a crise, maiores serão as cicatrizes na sociedade síria. Senhor Presidente, O meu país valoriza muito o papel das organizações regionais e a sua contribuição para a paz e a segurança. Acreditamos que a Liga Árabe é a organização mais apropriada para liderar os esforços destinados a solucionar uma crise que implica riscos diretos e ameaças para muitos dos seus Estados membros.

Como referi:

Apoiamos inteiramente os esforços da Liga Árabe; Apoiámos sem hesitar o pedido para agendar esta reunião; Apoiamos firmemente a decisão da Liga Árabe de 22 de janeiro e o roteiro político aí adotado, como o único caminho viável para o estabelecimento de um diálogo político credível entre todos os sírios, conduzindo a uma transição política pacífica.

Instamos todas as partes, facções e atores sírios a responder positivamente a esta proposta. Portugal subscreve inteiramente a necessidade da formação de um Governo de Unidade Nacional e apela fortemente ao Presidente Assad para que delegue autoridade plena no seu Vice-Presidente, de modo a conseguir uma transição política pacífica, em conformidade com o que foi sublinhado pelo Primeiro-Ministro do Qatar.

Sintetizando:

Apelamos a todos os membros deste Conselho para que não encarem a Síria com o olhar do passado, na esteira de antigas divisões. O que está em jogo na Síria é uma iniciativa árabe para um problema que é, antes de mais, árabe. Esta é uma crise que o mundo e as Nações Unidas não podem ignorar. Todos os membros deste Conselho se deveriam sentir confortáveis com a iniciativa da Liga Árabe, pois nenhum membro deste Conselho está confortável com os massacres diários perpetrados na Síria.

Senhor Presidente,

A inação não só é inaceitável como irresponsável. É tempo de assumirmos as nossas responsabilidades, e correspondermos às solicitações legítimas do povo sírio e às expectativas dos países da região. Devemos unir-nos no envio de uma mensagem forte e clara às autoridades sírias.

A credibilidade do Conselho de Segurança também se encontra em jogo. Devemos dizer-lhes, de forma inequívoca, que o morticínio deverá terminar e que deverá ser procurada uma solução política, baseada nas propostas da Liga Árabe. É por estes motivos que Portugal saúda Marrocos por ter submetido um projeto de resolução com estes objetivos em vista.

Continuaremos a concertar-nos de boa fé com todos os membros do Conselho de modo a aprovar rapidamente esta resolução. A situação na Síria já provocou sérias perturbações para os seus vizinhos. Desejo, neste contexto, expressar o profundo reconhecimento do meu país pelo auxílio que os países da região, nomeadamente a Turquia, se encontram a prestar aos que procuram fugir à violência, à perseguição e à repressão.

Mas sejamos claros. Se não agirmos, estaremos não só a condenar o povo sírio a mais violência e a mais repressão, como também a aumentar os riscos para a paz e a segurança de toda a região. Não há pois mais tempo a perder.

Excelências, Senhoras e Senhores,

Há um ano atrás, o povo da Tunísia colocou em marcha uma onda que rapidamente mudou o mundo árabe. Depois de décadas de silêncio e medo, pessoas comuns libertaram-se dos grilhões do medo. Manifestaram-se, saíram corajosamente para as ruas e fizeram ouvir a sua voz. Lutaram pela liberdade, pela igualdade e pelo seu direito a edificar um estado democrático e à sua cidadania. Recusaram-se a resignar-se à sua submissão. Estas são também as aspirações do povo sírio, e também ele recusa submeter-se ao uso desproporcionado e brutal da força.

O Presidente Roosevelt incluiu nas suas célebres quatro liberdades a Liberdade do Medo. É nosso dever auxiliar o povo sírio a libertar-se do medo que lhe é diariamente infligido.

Para colocar um termo ao morticínio;

Para permitir uma solução pacífica;

Devemos agir, e devemos agir agora!

Tal como Dostoievski referiu: “Viver sem esperança é deixar de viver”.

Cabe-nos a nós dar esperança e proteger as vidas do povo sírio. Agradeço-vos pela vossa atenção.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de fevereiro de 2012. Pode ser consultado aqui

“O regime sírio tem cobertura dos Estados Unidos”

É o líder do braço sírio da Irmandade Muçulmana, a organização islâmica mais influente no mundo. Exilado no Reino Unido, Ali Sadreddine al-Bayanouni, um advogado de 68 anos considerado um moderado, luta pela mudança de regime no seu país. Entrevista

Ali Sadreddine al-Bayanouni, líder do braço sírio da Irmandade Muçulmana ALCHETRON

Confirma a existência de reuniões entre elementos da Administração norte-americana e da Frente de Salvação Nacional (FSN, o maior grupo de opositores ao regime sírio, no exílio)?
Sim, houve encontros em Washington. Foram do conhecimento de todos. Aconteceram três ou quatro vezes, desde o início deste ano.

Participou nalgum?
Não. Foram restritos a membros da FSN que vivem nos Estados Unidos.

Esteve presente algum membro da Irmandade Muçulmana?
Ninguém da Irmandade esteve presente porque o escritório da FSN em Washington não tem membros da Irmandade.

De quem foi a iniciativa dos encontros?
Inicialmente, houve um pedido da FSN. Mas depois foram os americanos a solicitar as reuniões.

O que foi discutido?
A situação na Síria e o pedido da FSN para que os americanos deixem de apoiar o regime sírio.

Os Estados Unidos apoiam o regime de Damasco? De que forma?
O regime sírio beneficia de cobertura por parte dos Estados Unidos, da comunidade internacional e também dos governos árabes. Há alguma pressão exercida pela diplomacia americana no sentido do regime demonstrar uma boa conduta. Mas isso é feito não no sentido de contribuir para uma melhoria da democracia, da liberdade de expressão ou de outros valores democráticos na Síria, mas antes em nome do interesse americano na região.

“Aceitaria falar directamente com George W. Bush”

As sanções económicas podem ser uma forma de pressionar o regime sírio?
A Irmandade Muçulmana rejeita qualquer tipo de sanções, que puniriam o povo e não o regime. Tudo o que pedimos à comunidade internacional é que diminua o seu apoio ao regime despótico sírio e que imponha sanções contra pessoas do regime.

Pode dar um exemplo da cobertura internacional a Damasco?
A comunidade internacional continua a lidar com o regime sírio de uma forma natural. O regime não foi boicotado politica ou diplomaticamente. De tempos a tempos, realizam-se visitas. Os ministros dos Negócios Estrangeiros espanhol e francês foram à Síria, congressistas norte-americanos também.

Essas visitas são um erro?
São um grande erro, porque fortalecem a moral do regime numa altura em que ele deveria ser cercado e enfraquecido.

Aceitaria falar directamente com George W. Bush sobre estas questões?
Já declarei em muitas ocasiões que estou disponível para um diálogo directo com qualquer pessoa, quem quer que ela seja.

Não teme que o diálogo entre a Irmandade Muçulmana e os Estados Unidos possa desacreditar a organização junto de alguns sectores no mundo árabe?
Somos muito claros e abertos nos diálogos que promovemos. Preocupamo-nos com o direito do nosso povo à democracia, sem qualquer tipo de intervenção estrangeira, sem ocupação e sem debilitar os direitos dos sírios.

Sabe se há contactos entre os Estados Unidos e a Irmandade Muçulmana egípcia e jordana?
Só sei o que veio nos jornais, nomeadamente um encontro entre deputados egípcios que são membros da Irmandade Muçulmana e um político norte-americano que visitou o Egipto.

Os vários braços da Irmandade Muçulmana não se contactam?
De tempos a tempos, há reuniões consultivas, mas não se fala desse tipo de assuntos.

A Al-Qaeda é um perigo maior para os muçulmanos do que para os não-muçulmanos

A Irmandade Muçulmana quer conquistar o poder na Síria?
Absolutamente. Tudo o que exigimos é uma mudança democrática no país, com a participação de todas as cores da sociedade síria.

Bashar al-Assad desiludiu-o enquanto Presidente?
Não me desiludiu porque eu não esperava que ele promovesse qualquer mudança democrática. Ele é filho do Grande Assad e faz parte desse regime. Não tem qualquer projecto democrático para a Síria, é a continuidade do pai.

Movimentos como o Hamas e a Al-Qaeda dizem-se inspirados pela Irmandade Muçulmana. A organização tem laços com esses movimentos?
Em relação à Al-Qaeda, não há qualquer tipo de ligação ou contacto. Há mesmo grandes diferenças entre as duas organizações. A Al-Qaeda vê os membros da Irmandade como renegados e infiéis. Em relação ao Hamas, que está alinhado com a Irmandade em termos ideológicos e políticos, há circunstâncias especiais que se prendem com a ocupação da Palestina.

Sente a Al-Qaeda como uma ameaça, como quase todo o mundo?
A Al-Qaeda é um perigo maior para os muçulmanos do que para os não-muçulmanos, maior nos países islâmicos do que nos ocidentais. A pressão exercida sobre os partidos e líderes islâmicos moderados só aumenta esse perigo cada vez mais.

Como se pode combater a Al-Qaeda?
Temos de nos concentrar no seu pensamento ideológico. São muito extremistas, não aceitam o outro. Por outro lado, não devemos anular os moderados. Quando a ideologia moderada é aberta, o pensamento extremista adapta-se.

O senhor é considerado um moderado, mas no Ocidente vinga a ideia que a Irmandade é, por natureza, radical. Se a Irmandade subisse ao poder na Síria, uma mulher poderia tornar-se Presidente, por exemplo?
O Ocidente tem uma informação muito limitada em relação ao Islão e à Irmandade. O nosso projecto político pode ser consultado no nosso sítio na Internet, em inglês, e lá está expressa a posição do Islão e da Irmandade em relação às mulheres. Nós apelamos ao estabelecimento de um Estado civil, com instituições resultantes de uma escolha livre e democrática. Ora, se nós apelamos à realização de eleições livres, devemos aceitar os resultados, quer o vencedor seja homem ou mulher, muçulmano ou não-muçulmano.

Artigo publicado no Expresso Online, a 3 de agosto de 2007. Pode ser consultado aqui